sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Quoi ? - L'Eternité.

Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.
 
A.Rimbaud
 
 
A Eternidade é, pois, uma concentração e uma permanência, subsistindo absolutamente em si mesma. Nada lhe falta. Não conhece o decurso temporal, não é medida pelos séculos, nela não se encontra passado ou futuro: tudo lhe é presente de forma indizível. Essa plenitude do ser não é, porém, qualquer coisa de estático ou de fixo: Eternidade é vida, para além de todo a distensão, vida ativa em si mesma, vida por essência.

Esta concepção de Eternidade  tem, nas suas implicações, como é evidente, fundamentos da filosofia grega. Para Platão e Plotino, a Eternidade designava a condição dos seres inteligíveis que haviam se subtraído à mudança. A sua plenitude não poderia excluir a vida e o pensamento, mas traduzia a perfeita identidade consigo mesma e definia-se excluindo a sucessão, o antes e o depois, numa perpetuidade indivisa

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Inquiridor único...

"Um dos Mestres nos diz que toda uma geração de inquiridores pode somente produzir um adepto. Por que deve ser assim? Por duas razões:
"Primeiro: o verdadeiro inquiridor é alguém que aproveita da sabedoria de sua geração, que é o melhor produto de seu próprio período e entretanto que permanece insatisfeito e com a aspiração interior pela sabedoria não acalmada. Intui alguma coisa de importância maior que aquele conhecimento e algo de maior importância do que a experiência acumulada de seu próprio período e tempo. Ele reconhece um passo adiante e procura dá-lo para ganhar algo e acrescentar à cota já ganha por seus semelhantes. Nada o satisfaz até que ele encontre o Caminho e nada apascenta o desejo no centro de seu ser exceto aquilo que se encontra na casa de seu Pai. Ele é o que é porque experimentou todos os caminhos menores e os achou insuficientes e submeteu- se a muitos guias somente para achá-los ‘cegos guiando outros cegos'. Nada lhe é deixado senão tornar-se seu próprio guia e encontrar seu próprio caminho para casa por conta própria.
Segundo: o verdadeiro inquiridor é aquele cuja coragem é daquele raro tipo que capacita seu possuidor a permanecer invariavelmente firme e de cabeça erguida e a soar sua própria nota perfeitamente clara bem no meio do turbilhão do mundo. Ele é alguém que tem seu olho treinado para ver além das névoas e miasmas da terra até aquele centro de paz que preside todos os acontecimentos da terra e aquele ouvido treinado atento que (tendo recolhido um sussurro da Voz do Silêncio) se mantém sintonizado com aquela alta vibração e é assim surdo a todas as desorientadas vozes menores dos falsos iniciados.
Uma situação paradoxal surge do fato de se dizer ao discípulo para inquirir o Caminho e no entanto não haver ninguém para apontá-lo. Assim, somente florescem como adeptos em qualquer geração específica aquelas almas que 'tenham pisado o lagar da fúria de Deus sozinhos'.
0 espiritual também se apresenta na vida psíquica como um instinto, mesmo como uma paixão ou, segundo disse Nietzche, "como um fogo devorador". Não se deriva de qualquer outro instinto, mas é um princípio sui generis, uma forma específica e necessária da força instintiva.
Do jogo entre tensões opostas resulta a liberação de relativos excedentes de energia e o natural estabelecimento de declives por onde se: escoe esta energia livre. Com efeito, a história da humanidade demonstra que já o homem primitivo conseguia dispor de cotas de energia para aplicação utilitária no mundo exterior e para operações transformadoras internas, que se realizavam por intermédio da formação de símbolos religiosos de rituais e de atos mágicos. Não está todavia no poder do homem canalizar os excedentes energéticos para objetos escolhidos racionalmente. . Os esforços mais obstinados não serão suficientes se não existir, na mesma direção, um declive natural favorável à canalização da energia. "A vida somente flui para diante ao longo de declive adequado".
É através de transmutações da energia psíquica, da formação de símbolos novos sucedendo a símbolos caducos, esvaziados da energia que antes os animava, que se processa, na sua essência, o desenvolvimento da psique do homem.

 
Kalki-Maitreya

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

(Busca Intermitente) entre parênteses




« A Busca Intermitente», de Eugéne Ionesco é um livro impressionante e absorvente. Por estranho que pareça, no criador do Teatro do Absurdo, o autoretrato a traço carregado daquele que tem sido um dos dramaturgos modernos mais representados, mais discutidos, mais polémicos e, paradoxalmente, também um dos menos honrados. Quando alguém fala de si mesmo nem sempre fala do seu umbigo mas, como faz Ionesco, do que possa tocar outras pessoas que «trabalham no mesmo comprimento de onda»... A visão tremendista e «pânica» de Ionesco, tantas vezes expressa nas suas peças de teatro como « O Rinoceronte», «A Cantora Careca», «As Cadeiras» é esta «implacável verdade», sempre presente nas suas peças teatrais - sem quimeras, sem ilusões ideológicas, místicas ou religiosas - é esta lucidez radiográfica que faz transparecer neste livro o lado menos teatral e mais íntimo da sua mensagem artística.


O ''Parêntese'' (do grego παρένθεσις, "inserção") é uma doutrina e um método tibetano, budista e sufi, além de ser uma linhagem artística ocidental que William Buttler Yeats refundou e continuaram Proust, Joyce, Kafka, Borges e Cortázar, no contexto do ''feito estético como iminência de uma revelação que não se produz''. Ionesco expõe com claridade magistral esta doutrina do ''Parêntese'' em ''A Busca Intermitente''..pp 22-24, no diário 2, Passim, e em todas as suas peças teatrais. Ela também se ''revela'' na frase do escritor e filósofo argentino Héctor Alvaréz Mureña: ''A vida é um parêntese entre o nascimento e a morte''.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Faz-me rir...

A Wicca é uma religião neopagã de origem celta que alguns chamam de bruxaria ou feitiçaria (en inglês: Witchcraft ou the Craft), ainda que haja também grupos neopagãos que se identificam com isso de brujeria mas não com a Wicca moderna ou wiccanos. Foi popularizada pelo britânico Gerald B. Gardner como uma espécie de renascimento da chamada Antiga Religião, depois de ser ''iniciado'' (faz-me rir) por um''coven'' ou confraria que encontrou na zona de New Forest. - Diversos autores respeitados como Aidan Kelly rebateram durante anos as alegações de Gardner e disseram que os ritos de que ele fala em seu livro foram completamente inventados por ele. Isso também sucedeu com o que hoje as pessoas chamam de ''Yoga'', sobretudo a partir dos tratados de Patanjali: se começou a falar de Yoga como apenas uma prática física e respiratória como ''caminho espiritual'' sendo que isso sempre foi apenas uma parte e pouco importante de Correntes Tântricas antiquíssimas do Noroeste da Índia. Lembramos ao leitor que tudo o que hoje em dia se pretende ''tradição mística viva'' apelando para fontes gregas, egípicias, druidas ou célticas (como aWicca) é ABSOLUTAMENTE FALSO, EMBROMAÇÃO, INVENÇÃO E FANTASIA porque se tratam de coisas mortas e enterradas, secas e desaparecidas sem que houvesse nunca nenhum fio condutor que trouxesse algo disso intacto até os dias de hoje...



Os druidas foram aniquilados por Júlio César... , ainda que já não houvessem mais druidas, César mandou aniquilar tudo o que se parecesse ou se movesse por onde andaram os druidas: de modo que mais garantida não poderia estar a morte e extinção completa desta tradição da qual nada se conservou até osdias de hoje que mereça algum crédito.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Heyokah

Vamos recapitular: se um ser humano começa a aplicar os princípios da arte da espreita tolteca, ele ou ela se torna uma caçadora ou um caçador, pois faz o rastreamento daquilo que caça. Nesse sentido, tudo é caça, e tudo pode ser espreitado. Mas aí ainda se aplicam os princípios a seres e coisas, por exemplo, um animal, uma pessoa que se quer cooptar, uma namorada, um cliente, um ganho etc.

Quando o ser humano aplica os princípios da espreita a si mesmo, e começa a se rastrear, as suas fraquezas, os seus hábitos, etc, ele não tem mais um objetivo concreto, então ele está pronto para caçar o ''poder pessoal''. O homem e a mulher que caçam o ''poder pessoal'' são um guerreiro e uma guerreira.

Uma forma exuberante e supereficaz de espreitar o próprio ego (que é a mais difícil e importante das tarefas do rastreamento de energia) está na figura do Heyokah, como é chamado nas tribos das planícies americanas, e que os Hopis e Pueblos chamam de Koshari.

O Heyokah é um palhaço que, diferentemente dos outros, possui grande sabedoria e leva seus ensinamentos ao Povo através do riso e dos paradoxos, colocando-se a si mesmo em situações embaraçosas e por vezes ridículas. Este Trickster Sagrado é antes de tudo um supremo ator que faz com que você pense por você mesmo e chegue às suas próprias conclusões, levando-o a questionar se aquilo que os outros dizem ou fazem é verdadeiramente correto. No momento em que as pessoas são levadas a pensar por conta própria, começam a colocar à prova as suas próprias convicções; aquelas crenças psico-sociais vacilantes, que pertencem ao passado e se apoiam em muletas, passam a ser testadas e questionadas.

A fama do Heyokah consiste justamente em transmitir suas lições fazendo com que os outros não se levem assim tão a sério. O riso passa a constituir a lição definitiva, pois consegue romper os bloqueios que estão minando o equilíbrio das pessoas. O Heyokah consegue ser bem-sucedido quando tudo é encarado com humor, e os laços com os velhos hábitos, que já não servem mais para nada, são rompidos. O Guia de Cura que acompanha o Heyokah é o Coiote. O Heyokah é um grande conhecedor da Magia do Coiote, e sabe utilizar o lado brincalhão da natureza deste animal para conduzir os outros a um estado mais iluminado de consciência. Ocasionalmente, o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro, e a Energia do Coiote pode vir a atingir o Heyokah em algum ponto fraco. Quando isto acontece, um verdadeiro Heyokah aceita o revés com humor, e acha graça na virada da situação, terminando por aprender a sua própria lição, juntamente com a lição que foi dada aos outros.

O Povo Nativo reconhecia a importância de saber levar a vida de modo um pouco menos sério e aprender a rir de si mesmo. Em outros tempos não se considerava que o fato de ser alvo das brincadeiras do Heyokah deixava a pessoa "de cara no chão".




"Es mi obligación enseñarte a ver. No porque yo personalmente quiera hacerlo, sino porque fuiste escogido; tú me fuiste señalado por Mescalito. Sin embargo, mi deseo personal me fuerza a enseñarte a sentir y actuar como guerrero. Yo personalmente creo que ser guerrero es más adecuado que cualquier otra cosa. Por tanto, he procurado enseñarte esas fuerzas como un brujo las percibe porque sólo bajo su impacto aterrador puede uno convertirse en guerrero. Ver sin ser antes un guerrero te debilitaría; te daría una mansedumbre falsa, un deseo de hundirte en el olvido; tu cuerpo se echaría a perder porque te harías indiferente. Mi obligación personal es hacerte guerrero para que no te desmorones.
"Te he oído decir una y otra vez que siempre estás dispuesto a morir. No considero necesario ese sentimiento. Me parece una entrega inútil. Un guerrero sólo debe estar preparado para la batalla. También te he oído decir que tus padres dañaron tu espíritu. Yo creo que el espíritu del hombre es algo que se daña muy fácilmente, aunque no con las mismas acciones que tú llamas dañinas. Creo que tus padres sí te dañaron, haciéndote indulgente más de la cuenta.
"El espíritu de un guerrero no está engranado para la entrega y la queja, ni está engranado para ganar o perder. El espíritu de un guerrero sólo está engranado para la lucha, y cada lucha es la última batalla del guerrero sobre la tierra. De allí que el resultado le importa muy poco. En su última batalla sobre la tierra, el guerrero deja fluir su espíritu libre y claro. Y mientras libra su batalla, sabiendo que su voluntad es impecable, el guerrero ríe y ríe."

C.CASTAÑEDA





Na verdade, era até considerado uma honra ser escolhido como alvo de uma brincadeira que transmitisse uma valiosa lição espiritual. Cada membro da Tribo era parte essencial do Todo; por isto muitas vezes a brincadeira passava ensinamentos para outros indivíduos daquele mesmo grupo. Todos aqueles que haviam participado da brincadeira, ou que falavam dela, poderiam, mais tarde, relacionar aquela lição às suas próprias situações pessoais e crescer através deste processo.

O heyokah zomba, debocha, ilude, confunde, faz tudo ao contrário, se comporta como um louco, um idiota ou um supremo debochado, desmanchando todas as ilusões de certeza do dia-a-dia e dos costumes. É mestre em fazer o ponto de encaixe da percepção se deslocar de uma maneira quase imperceptível, mas profunda, e modificar o sentido de todas as situações com seu humor. É mestre em mostrar que todas as certezas não passam de ilusão, e que o inesperado é o próprio recheio do bombom de todos os instantes.

Há duas faces para a eficácia da tática heyoka, e do humor em geral, principalmente no campo da sociedade contemporânea, que barateia o humor e infantiliza as pessoas. O comportamento inusual e humorístico move sim suavemente o ponto de encaixe da percepção, mas, por outro lado, a pessoa pensa que aquilo é só bobagem, e tributa o movimento a um certo desconforto com essa tolice. E estamos na época da vigência da tolice e da besteira, que caem como uma gota no oceano da mídia e dos comportamentos grosseiros usuais.

Caçar o poder pessoal, rastrear a própria energia, espreitar as relações de força e de poder, lutar para ver a energia diretamente, são o campo de caça do guerreiro, que o faz em qualquer situação contingente, em qualquer época, lugar, estado etc. Aí ele está aplicando os princípios da ''espreita'' e da ''loucura controlada'', pois não se identifica mais consigo mesmo (seu ego, alheio a sua força) ou com objetivos mundanos (determinados arbitrariamente pela socialização).

A consequência aí é que o homem e a mulher podem começar a intuir a realidade de uma forma direta, e "ver", quer dizer, perceber, a força por trás de tudo, a energia que emana de todas as coisas e que as liga numa rede cósmica.

Esse é o vidente.

Se o vidente utiliza sua capacidade de caçador, de guerreiro, de espreitador e de vidente para a busca do outro lado da moeda do ser, o desconhecido, o "espiritual", o espírito, o nagual, o intento, então ele e ela estão lutando para ser um homem e uma mulher de conhecimento.

Ao começar a manejar o intento, ao aprender a se ligar na rede que vê e se faz uma com ele e com ela, ele e ela então se tornam homem e mulher de conhecimento, que sabem usar o intento.

O primeiro passo de todas as técnicas é adotar a morte como conselheira. Tal feito é o não-fazer do homem social que nós somos, que pensa que está externamente nos seus dilemas menores, quando, na verdade, assiste e participa de um momento único de força e beleza do mundo.

- É burrice sua escarnecer dos mistérios do mundo, simplesmente porque conhece o ''fazer'' do escárnio - disse ele, com uma cara séria.

Falei que não estava escarnecendo de nada ou ninguém, mas que era mais nervoso e incompetente do que ele pensava.

- Sempre fui assim - disse eu. - E, no entanto, quero modificar-me e não sei como. Sou muito inadequado.

- Já sei que você acha que não presta - disse ele. - Isso é seu fazer. Agora, para afetar esse fazer vou recomendar que você aprenda outro fazer. De hoje em diante, e por um período de oito dias, quero que você minta para si mesmo. Em vez de se dizer a verdade, que você é podre, feio e inadequado, você se dirá que é o oposto, sabendo que está mentindo e que é completamente sem esperança.

- Mas qual a finalidade de mentir assim, Dom Juan?

- Pode prendê-lo a outro fazer e então você pode compreender que ambos os fazeres são mentiras, irreais, e que prender-se a qualquer deles é uma perda de tempo, pois a única coisa que é real é o ser em você, que vai morrer. Chegar a esse ser é o não fazer do eu.

Antes de falar sobre o não fazer, vamos comentar um pouco mais a respeito do ponto de encaixe da percepção.

O conhecido são as emanações dentro do campo de consciencia que o ponto de encaixe está focando, que ilumina e ressalta, fazendo com que nossa autoconsciência se faça dessas fibras.

O desconhecido são as emanações da Águia que estão no nosso campo de consciencia, ou não, e que não focalizamos com nosso ponto de encaixe. A posição pré-estabelecida pela sociedade é chamada tonal dos tempos, todos são "normais".

A posição do ponto de encaixe que nos foi ensinada e à qual estamos acostumados é o nosso tonal pessoal. A primeira atenção.

A segunda atenção é deslocar o ponto de encaixe para essas posições do desconhecido, por algum tempo. Fazemos isso toda noite, no sonho. Os homens de conhecimento desenvolvem a capacidade de provocar esses deslocamentos á vontade, de forma espontânea e genuína, aprendem a utilizá-los e sabem ir e voltar com toda segurança e sem nenhum prejuízo mental ou físico. Pelo contrário, geralmente voltam fortalecidos de suas aventuras. Sobretudo fisicamente.

Deslocar o ponto além das emanações da Águia é o incognoscível.

A terceira atenção é o deslocamento para dentro da Águia.

As atenções também não são algo dado, não são um lugar ou lugares.

As atenções são sintonizações do ser, no caso, o ser humano, qualquer ser humano, sabe que consegue sintonizar de duas formas, a normal e a alterada: duas atenções. A terceira, a quarta e a quinta atenções são também realizações sofisticadas do ser humano. Estas implicam na manutenção da consciência e sua expansão além dos limites espácio-temporais humanoides.

Numa comparação porca: é como um rádio que pega AM ou FM; mas um rádio que pudesse se reprogramar, se refabricar, para atingir outras faixas eletromagnéticas.

Inclusive, pode-se pensar numa sexta atenção e ainda mais.

O mestre do não-fazer e da espreita, o palhaço, o temível e ao mesmo tempo histriônico Don Genaro, pode ter feito a maior revelação de todas (ou a segunda maior, depois daquela em que Don Juan diz a Carlos que ele está cercado pela eternidade e que pode usar essa eternidade se quiser).

Foi quando Don Juan apresentou Carlos a Genaro (antes o tinha visto rapidamente na praça, mas não conversaram), na sua casa no México central. Genaro debocha de Carlos, de ele tomar notas, senta-se sobre a cabeça, infla as narinas, fazendo a caricatura de nosso herói. Depois ridiculariza Don Juan, imitando seus trejeitos de se alongar e estalar as costas (quando ele então estaria fazendo passes mágicos), e o nagual volta bem a tempo de ver sua paródia e ri.

No outro dia, ele "ensina" a Carlos, explicação que será desmoralizada por Don Juan no momento seguinte, o qual dirá "Falar não é a predileção de Genaro". Claro, tudo isso é espreita nagualista.

- É verdade, você sabe disso Juan.

Depois afirmou que um mestre autentico podia levar seu discípulo com ele e chegar a atravessar as dez camadas do outro mundo. O mestre, desde que fosse uma águia, podia começar da camada mais inferior e depois passar por cada mundo sucessivo até chegar ao topo.

O que Don Genero estava realmente revelando? Dez atenções, através das quais o mestre pode levar seu aprendiz!

O não fazer é a suave e imperceptível prática de realizar atos incomuns, agir conforme não se espera de si mesmo, surpreender e chocar a si mesmo como tática para despertar a atenção, cultivar e cativar outras formas de estar, posições e atitudes, como uma espreita de si mesmo.

A busca de recompensas é o que mais energia nos faz perder. Você só deve fazer aquilo que o intento indica. A importância pessoal é implacável, ela nos rastreia e caça ao longo da vida, pois ela se alimenta de nossa energia psíquica. O nosso ego não é nosso. Mais precisamente: ele é um bicho, um inorgânico. Voltaremos a este ponto mais adiante. Para encontrar a liberdade total, a pessoa deve renunciar inclusive ao desejo de ser livre, à escravidão de qualquer desejo. Não se trata de buscar a liberdade por medo de morrer. A importância pessoal adora as recompensas porque ela coroa nosso desperdício de energia com a autoreflexão, nossa amante e homicida. E assim trunca o livre fluxo da energia através da pessoa. O que sempre acaba produzindo alguma doença letal com o tempo. Como o câncer.

Não vás demasiado depressa. Há que aperfeiçoar o tonal, antes de se aventurar no nagual.

Essa prática produz um suave e duradouro movimento do ponto de encaixe, e serve como forma de torná-lo mais "flexível", mais "movível".

Voltando a algo que falamos a muitas páginas e há muitos momentos atrás, o feiticeiro abandona por completo a posição de refém entre a cruz e a espada da mentira e da verdade. Isso é o não-fazer do ser e estar.

- Tudo isso é verdade, Dom Juan?

- Dizer que sim ou que não seria fazer. Mas como você está aprendendo a não fazer, devo dizer-lhe que realmente não tem importância se tudo isso é verdade ou não. É aqui que o guerreiro leva vantagem sobre o homem comum. O homem comum se importa em saber se as coisas são verdadeiras ou falsas, mas um guerreiro não. Um homem comum procede de maneira específica com as coisas que ele sabe serem verdade e de maneira diversa com o que sabe não ser verdade. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age e acredita no que faz. Mas, se as coisas são supostamente falsas, ele não quer agir, ou não crê no que faz. Um guerreiro, ao contrário, age em ambos os casos. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age a fim de estar fazendo. Se se supõe que as coisas são falsas, ele ainda assim age, a fim de não fazer. Entende o que digo?

- Não. Não estou entendendo nada - respondi.

Todas as técnicas estão relacionadas, como uma figura geométrica, todos os pontos se ligam de todas as formas, como num círculo ou esfera.

Combinando as técnicas sugeridas por Carlos e por Taisha para obter o silêncio interno e mover o ponto de encaixe da percepção, temos:


Arte Marcial

Recapitulação

Não-fazeres

Pequenos tiranos

Contemplação

Silêncio interior

Impecabilidade

Ensonho

Espreita

Centro de decisões



O centro de decisões pode ser o que exige mais energia no final das contas, pois signfica se livrar do ritmo da energia inorgânica e estabelecer a nossa própria vontade, vontade de potência, como diria Nietzsche, que é o portal de acesso ao intento.

Cada uma se liga com todas as outras, se potencializam, são um circuito que é percorrido o tempo todo, sem parar, de forma cada vez mais potente, no aprendizado. Tudo leva ao silêncio interior, que leva ao movimento do ponto de encaixe da percepção.

"Tudo o que chega a nossos sentidos é um sinal. Só é necessário ter a velocidade para silenciar a mente e captar a mensagem. Por meio dessas indicações, o espírito fala conosco com uma voz muito clara".

"Os bruxos da velha guarda eram propensos ao misticismo; eles usavam a astrologia, oráculos e conjuros, varas e amuletos mágicos, qualquer coisa que enganasse a vigilância da razão virava um ''objeto de poder''.

"Mas, para os novos videntes, esses recursos são um desperdício e ocultam um perigo: podem desviar a atenção da pessoa que, em vez de se focalizar em seu vínculo imediato com o espírito, termina por se acostumar ao símbolo. Os guerreiros atuais preferem métodos menos ostentosos. Don Juan recomendava diretamente o silêncio interior. /.../

"O silêncio é a passagem entre os mundos. Ao calar nossa mente, emergem aspectos incríveis de nosso ser. A partir desse momento, a pessoa se torna um veículo do intento e todos os seus atos começam a exsudar poder.

"Durante minha aprendizagem, meu benfeitor me mostrou prodígios de percepção inexplicáveis que me espantavam, mas, ao mesmo tempo, despertavam minha ambição. Eu também queria ser poderoso como ele! Frequentemente lhe perguntava como eu poderia aprender seus truques, mas ele colocava um dedo sobre seus lábios e ficava me vendo. Foi apenas muitos anos mais tarde que eu pude apreciar completamente a magnífica lição de sua resposta. A chave dos bruxos é o silêncio".




Os não fazeres têm como escopo principal o intento, assim como todas as técnicas. O objetivo se escalona em várias metas, na ordem: silêncio interno total, mover o ponto de encaixe da percepção, perder a auto-importancia, apagar a história pessoal , encontrar o aliado, dominar o intento.

A auto-imagem

O estado natural do nosso ser é a atenção plena: uma atenção que não é voltada para uma dada coisa, mas que é um estado de experiência pura que abrange todas as coisas. Dentro da atenção plena, nossa mente é equilibrada, leve, livre e flexível. Não somos, no entanto, capazes de permanecer dentro dessa atenção plena, pois nossa inclinação imediata é querer saber quem está vivendo o quê. Em consequência, a atenção plena cede lugar à nossa consciência comum, que divide nossas percepções em sujeito e objeto, criando como sujeito uma "auto-imagem", o "eu". Mas o que é, na verdade, este "eu" ? Será que podemos, de fato, encontrá-lo em algum lugar na mente ? Quando olhamos com cuidado, vemos que o "eu" é simplesmente uma imagem que a mente projetou. Este "eu" não tem realidade alguma em si; no entanto, nós o tomamos como real e o deixamos gerir as nossas vidas. O "eu", então, obscurece nossa atenção plena e nos separa da nossa experiência, dividindo-a em um pólo subjetivo e um objetivo.


Sob a influência da auto-imagem, perpetuamos esta orientação sujeito-objeto. Tão logo nos identificamos, começam as comparações; logo em seguida surgem tendências à posse e ao egoísmo. A mente, então, põe-se a fazer discriminações e julgamentos que provocam conflitos. A auto-imagem fornece energia a estes conflitos, e estes conflitos, por sua vez, alimentam a auto-imagem. Desse modo, a auto-imagem perpetua-se a si mesma, tendendo a filtrar as experiências de forma a só permitir espaço para que as suas próprias estruturas rígidas funcionem. Desprovida de abertura e de aceitação, a auto-imagem nos aprisiona em bloqueios e limitações. O fluxo natural da nossa energia fica interrompido, e a nossa sensibilidade de resposta, bem como a pofundidade da nossa experiência, ficam com a amplitude seriamente diminuída.


A fim de nos libertarmos da interferência da auto-imagem, e para que nosso equilíbrio natural tenha espaço para atuar, precisamos primeiro ''ver'' que a auto-imagem não é uma parte autêntica de nós mesmos, que nós não precisamos dela, e que, de fato, ela obscurece o nosso verdadeiro ser. Uma forma de conseguir isto é dar um passo atrás e observar nossos pensamentos e reações emocionais automáticas e impensadas, sempre que estivermos em meio a uma fermentação psico-social.


Mesmo quando estamos muito perturbados, é possível nos separarmos da fumaça tóxica do desequilíbrio emocional. Recue um pouco e, de fato, olhe para sua mente enquanto ela ainda está confusa e agitada como uma água turva e barrenta, pois a poeira só desce para o fundo se a água da mente se acalmar. Com este conhecimento, você pode ver que a perturbação é, na verdade, causada pela auto-imagem e pelas reações emocionais impensadas que a defesa da sua auto-imagem te obriga.



É fácil perceber que o Tonal dos nossos tempos, o Tonal ocidental, possui a fraqueza do narcisismo. O problema não é a tautologia ou a dialética, pois esses são modos do jogo; o problema é a perfeição do sentido que tal jogo tem para nós, pois dificilmente conseguimos, ou melhor, queremos, variar as regras. Jogamos o jogo da duração, e fazemos do mundo um palco onde possamos encenar nosso compromisso. Palco da vida no qual jogamos o jogo do duplo e inventamos pares que se remetem mutuamente: empírico e transcendental, essência e aparência, qualidades primeiras e qualidades segundas, fatos e valores, natureza universal e cultura relativa, inato e ação humana, semelhança e diferença; .dicotomia universal do osso e da carne. (Duvignaud 1979:80), elementos do nosso pensamento, realidade atualizada pela ação vesga dos atores, membros comprometidos com um modo de descrição: a representação, o modo da dobra, a .fonte principal de infecção. (Latour 2004:78). Como vimos no capítulo anterior, os limites, as positividades, as fronteiras, atualizam a dobra do espaço no tempo ou do tempo no espaço . atualizam o tempo e o espaço como dobra, intervalo. Assim, é possível o .quadro. que permite ao pensamento .ordenar. as similitudes e as diferenças, permite à linguagem se entrecruzar com o espaço e fundar o .lugar. onde o contínuo do tempo pode vir a repousar, a durar (Foucault 1999: XII). Lugar como .tábua de trabalho. (Foucault 1999: XII), solo positivo prenhe de positividades (de vida, trabalho e linguagem) que posicionam o olhar, determinando e delimitando a ação e a atenção. Com que descrição ocupar o intervalo? Com a do lugar, o corpo estabelecido, determinado, estado, significado pela linguagem . figuração de um significante. Ocupar um lugar é possuir uma forma, ponto de vista que se reflete no espelho.



















quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Varrer a ilha

 
 
Ana Maria Ramo y Affonso
 

 

 

Todas as técnicas que Castaneda deve aprender no intuito de tornar-se guerreiro podem ser compreendidas como modos em que a pessoa (ou ator) adquire fluidez ao flexibilizar os limites que a definem, as máscaras que a constituem, ao agir de acordo com a sua vontade mais íntima, ou seja, ao se libertar dos grilhões de uma convenção que a desapropriou de sua motivação. O guerreiro foge da prisão do homem comum, do compromisso inviolável com um roteiro de vida traçado por outros, com uma cultura que é uma .rede de movimentos concertados. (Duvignaud 1977: 116) com um ponto de vista que faz de seu corpo um objeto durável, permanente na sua finitude. Os homens comuns somos atores cuja escolha, ou compromisso, com um único .modo de estar no mundo. não é feita por nós mesmos a cada volta do caminho. A motivação, a .inércia ou a necessidade sentida de ter de resolver as coisas de um certo modo., não nos pertence (Wagner 1981: 54); não temos escolha e, portanto, não há possibilidade de mudança de compromisso com a realidade. Somos um conjunto de pensamentos e ações delimitados culturalmente pelo compromisso com determinado estilo de criatividade. Não só as .personalidades., como também as .almas humanas. estão comprometidas com o estabelecimento de um intervalo, de uma distinção entre o inato e o artificial, entre o que se é e o que se faz (Wagner 1981: 95). O Tonal do ator está fadado ao desequilíbrio, à falta de balance, pois não há concordância constante entre as decisões e os atos. E assim a neurose (dentre inúmeras possibilidades) é o sintoma. Modo de ser no espaço e estar no tempo dobrado, como já falamos. Modo de ação que convenciona o evento em contexto, que detém o movimento, que imobiliza a duração. Modo de ação de pessoas inventando personalidades que nem de longe abarcam todas as possibilidades do ser e do estar. Mas preferimos nos limitar a um roteiro pré-definido, pois assim temos a certeza de ocupar algum lugar no palco da vida. E ainda, achamos que somos as estrelas do espetáculo, esquecendo o pouco tempo que temos para aproveitar as infinitas possibilidades do improviso. .¿Cómo puede uno darse tanta importancia sabiendo que la muerte nos está acechando?., pergunta don Juan (Castaneda VI: 62). Pedir conselho à morte muda o nosso sentido da duração, e, portanto, do tempo.



Saber que não tem tempo a perder faz com que o guerreiro atue sempre como se o seu ato presente fosse o último e, portanto, dá sempre o melhor de si (VI: 127-128). Os atos de um guerreiro têm poder (VI: 125) porque ele convida a morte para ser testemunha de suas ações, de seu estado passageiro, de sua diferença mutante. O guerreiro não atua, ele age. Ele .atua só por atuar., de forma descompromissada com toda descrição, inclusive com a dos homens e a dos bruxos. Ele flui por entre as descrições. O mundo é um .mistério sem fim. e o guerreiro da variação deve buscar a fissura entre as várias descrições. Mas o guerreiro sabe que o seu espírito não está suficientemente balanceado para suportar tal desafio e procura minuciosamente este balanço através de seus atos, pois a falta de balanço se deve à .soma total de todas as ações. (Castaneda VI: 42). A persistência na ação é a chave-mestra de inúmeras portas: agir como um guerreiro é apaziguar a mente e pular os muros, em lugar de derrubá-los (VI: 74); agir como se nada tivesse acontecido, atuar por atuar, pois um guerreiro .aceita sem aceitar e descarta sem descartar. (VI: 75), realizando atos sem esperar recompensa.



É preciso atuar sem buscar explicações, pois só como guerreiro é possível

sobreviver ao caminho do conhecimento e do poder, à experimentação da .totalidade de si mesmo., às investidas do Nagual. Um guerreiro que vai o mais longe possível na caça ao poder se transforma em .homem de conhecimento., como don Juan. Um .homem de conhecimento. é um ator que sabe que seus atos são somente atos, mas que atua .como se. eles tivessem alguma importância. Aqui também há controle, controle do .desatino. de querer estar constantemente fazendo sentido (Castaneda RA: 92-94). O .homem de conhecimento. é um ator que desmascarou a peça e vaga pelos palcos da vida, livre e automotivado.


.Ya deberías saber a estas alturas que un hombre de conocimiento vive

de actuar, no de pensar en actuar, ni de pensar qué pensará cuando

termine de actuar. Por eso un hombre de conocimiento elige un camino

con corazón y lo sigue: y luego mira y se regocija y ríe; y luego ve y

sabe. Sabe que su vida se acabará en un abrir y cerrar de ojos; sabe que

él, así como todos los demás, no va a ninguna parte; sabe, porque ve, que

nada es más importante que lo demás. En otras palabras, un hombre de

conocimiento no tiene honor, ni dignidad, ni familia, ni nombre, ni tierra,

sólo tiene vida que vivir, y en tal condición su única liga con sus

semejantes es su desatino controlado. Así, un hombre de conocimiento se

esfuerza, y suda, y resuella, y si uno lo mira es como cualquier hombre

común, excepto que el desatino de su vida está bajo control. Como nada

le importa más que nada, un hombre de conocimiento escoge cualquier

acto, y lo actúa como si le importara. Su desatino controlado lo lleva a

decir que lo que él hace importa y lo lleva a actuar como si importara, y

sin embargo él sabe que no importa; de modo que, cuando completa sus

actos se retira en paz, sin pena ni cuidado de que sus actos fueran buenos

o malos, o tuvieran efecto o no. Por otro lado, un hombre de

conocimiento puede preferir quedarse totalmente impasible y no actuar

jamás, y comportarse como si el ser impasible le importara de verdad;

también en eso será genuino y justo, porque eso es también su desatino

controlado". (Castaneda RA: 100).



Há uma imensa diferença, e não podemos deixar de notá-la, entre os filósofos-sábios que inventam um durável mundo comum, e um .homem de conhecimento. que só tem vida para viver, até que acabe.

 

 
"Yo te di lo suficiente de la visión de los brujos sin permitir que te

enganchara. Te dije que si uno hace encarar a dos visiones, la una contra

la otra, puede escurrirse entre ambas para llegar al mundo real. Me refería

a que sólo puede llegarse a la totalidad de uno mismo cuando uno tiene

bien entendido que el mundo es simplemente una visión, sin importar que

esa visión pertenezca a un hombre común o a un brujo. (Castaneda RP:

320).

Para testemunhar o Nagual, o guerreiro precisa primeiro .encolher. o seu Tonal (Castaneda RP: 208). Um guerreiro é um caçador de poder, e o poder pessoal de um guerreiro é o que permite que o Tonal ceda espaço à manifestação do Nagual, pois é a força que desloca o Tonal, que lhe retira o lugar e o sentido, que o desordena . um puxão (RP: 214). A arte do guerreiro consiste então em encolher o Tonal até o ponto em que o Nagual tome as rédeas, e então parar por aí e impedir que o Tonal encolha demais, pois caso contrário o Nagual pode causar um grande dano ao Tonal (RP: 214). O guerreiro deve crer que o poder pessoal é algo que pode ser usado e guardado, um sentimento que determina o modo de agir da pessoa, o seu modo de estar no mundo e de ser mundo. Estar convencido disto significa que o guerreiro pode atuar por si mesmo, que ele percebe o estado de ânimo em que consiste o seu poder pessoal (Castaneda VI: 221).



Se o poder é um estado de ânimo, então o guerreiro deve caçá-lo através de seu sentir, atualizando seu ser em um estado animado pelo poder, e não pelo fazer convencional. Um guerreiro é aquele que .cria seu próprio ânimo., seu próprio modo de estar no mundo através de cada um dos seus atos realizados impecavelmente (VI: 171).



Mudando o seus atos, os seus hábitos, o guerreiro consegue, pouco a pouco, tampar os buracos, os .pontos de desague. por onde o poder se esvai (VI: 247). Ele deve treinar seu espírito para ser impassível, se controlando e se abandonando ao mesmo tempo (VI: 160).



Difícil técnica esta que dá ao guerreiro a fluência necessária para se alinhar com o poder e segui-lo até que o .mundo deixe de existir. (VI: 151). Sem contexto de controle estabelecido o guerreiro libera a sua visão, e o seu corpo, e marcha com o poder, fluindo por entre as descrições do mundo. Don Juan explica: .[...] el poder es algo dentro de uno mismo, algo que controla nuestros actos y a la vez obedece nuestro mandato. (Castaneda

VI: 143).

 
Ter poder: poder de puxar o Tonal, de se descomprometer com o lugar ocupado, com a forma, com o limite, com o ponto de vista, com o seu corpo, e não sucumbir. O que don Juan ensina a Castaneda se resume às técnicas para .parar o mundo. e adquirir poder, pois o poder pessoal é o que permite ao guerreiro não se comprometer com qualquer descrição dada, ou seja, .derrubar o mundo. (Castaneda VI: 193). A chave para o poder não é só o conhecimento, apesar do conhecimento ser uma forma de poder. A chave para o poder é se apropriar da própria percepção através dos atos: eis porque os atos de um guerreiro têm poder. O poder pessoal, o estado de ânimo impecavelmente afinado segundo os acordes da vontade mais íntima do guerreiro, é o único que ele possui neste mundo que é um mistério sem-fim (VI: 233). O agir é essa afinação do ânimo do guerreiro com o ânimo do poder. Agir é fluir, estar presente no momento (Castaneda RP: 19), perseguir o poder até que o mundo tal como o conhecemos tenha deixado de existir (RP: 151) ..derrubar o mundo., como dizíamos acima. Com confiança e abandono o guerreiro sente o poder em si, e este poder permite a ele desfazer o mundo, para depois refazê-lo e continuar vivendo (RP: 193).



Don Juan enfatiza: .A experiência das experiências é ser um guerreiro. (Castaneda RP: 76). Ser guerreiro é ser fluido, imprevisível, de modo a poder acompanhar as variações nas descrições. Enquanto o ator pertence a um mundo definido de pensamentos e ações, (máscaras com as quais ele se faz pessoa), o guerreiro é aquele que vai além das próprias fronteiras e flexibiliza os limites que o definem, os escudos que o mantêm vivo, as positividades que o finitam. O guerreiro busca a .totalidade de si mesmo. e para isto ele procura que o Tonal ceda as rédeas, o controle. Como o Tonal é a sua própria vida, o guerreiro deve convencê-lo a fazer isso, e não forçá-lo. Assim, o guerreiro .varre a ilha. do Tonal de forma cuidadosa e prepara o Tonal para ser capaz de .entrar em relações com outras alternativas. (RP: 235).


.Nadie es capaz de sobrevivir un encuentro voluntario con el nagual, sin

una larga preparación. Lleva años preparar al tonal para tal encuentro. Por

regla general, si un hombre común y corriente se encuentra un día cara a

cara con el nagual, la impresión es tan grande que lo mata. La meta de la

preparación del guerrero no es entonces enseñarle conjuros ni embrujos,

sino preparar a su tonal para que no se caiga de narices. Una empresa de

lo más difícil. Al guerrero se le debe enseñar a ser impecable y a estar

totalmente vacío antes de que pueda aún siquiera concebir el ser testigo

del nagual. (Castaneda RP: 231).

 


O mestre deve ensinar o antropólogo a .varrer a ilha., a organizar os elementos do Tonal de modo que o aprendiz logre uma transformação da ilha. Esta tarefa requer do aprendiz que escolha o caminho do guerreiro, marcado pela .sobriedade. e pela .força. (Castaneda RP: 313). A tarefa de Don Juan de .limpar e reordenar. a ilha do Tonal do antropólogo é o modo de ensiná-lo a ser um guerreiro (RP: 302). O Tonal individual de um guerreiro é cada vez mais fluido, pois aceita a sua limitação em relação ao Nagual. Oselementos da ilha nos quais a pessoa centrava sua atenção, as suas fachadas erigidas como fronteiras infranqueáveis, as máscaras que o definiam enquanto pessoa, os limites que o conformavam, são substituídos por outros elementos que sempre estiveram presentes na ilha, mas que não eram conhecidos porque tal pessoa não prestava atenção neles. A mudança drástica requerida pelo mundo da bruxaria consiste, então, em .alterar o uso dado. aos elementos da ilha, modificando assim a sua importância e proeminência, pois na ilha nada pode ser acrescentado ou eliminado (RP: 316). .Varrer a ilha. é uma escolha de perspectiva, uma escolha de outro corpo.



Tornar-se guerreiro, fluido, imprevisível, desapegado e, sobretudo, impecável, essa é a meta do aprendiz. Uma das principais técnicas que permitem ao aprendiz tornar-se guerreiro e ao guerreiro parar o diálogo interno é o que don Juan chama .apagar a história pessoal. (Castaneda RP: 311). A história pessoal é uma das amarras que escravizam um Tonal individual ao Tonal dos Tempos, pois a história pessoal é o roteiro dado ao ator, já nos primeiros momentos da sua vida, por aqueles que o cercam. A história pessoal é o que nos torna previsíveis aos olhos alheios e o que permite que os outros nos .segurem com seus pensamentos. (Castaneda RP: 34), criando a ilusão de que já estamos prontos, ou seja, mascarando o caráter fluido da auto-invenção e, em conseqüência, da invenção do mundo.



Ao nos acharmos prontos, dados, acabados e definidos, pensamos que tudo no mundo compartilha conosco estas características. .Apagar a história pessoal., assim como as três técnicas usadas para este fim, .perder a importância., .assumir a responsabilidade., e .usar a morte como conselheira., são .os meios que usa o bruxo para mudar a fachada dos

elementos da ilha. (Castaneda RP: 314).



A outra técnica que faz cessar o diálogo interno é o sonhar (Castaneda RP: 311). Para se fazer acessível ao poder, um guerreiro, além de afinar o seu ânimo com o fluir do poder, deve aprender a .arrumar seus sonhos., pois o sonhar é uma das principais avenidas para se atingir o poder (Castaneda VI: 135). Primeiro, ele aprende a focalizar sua atenção de maneira deliberada nos elementos que escolhe dentre aqueles que formam o sonho; depois, aprende a se movimentar de acordo com a sua vontade ou intenção e a viajar para o lugar que escolher. Arrumar os sonhos é um modo de controlar a própria percepção e os próprios atos. O guerreiro pode atuar neles com deliberação, por isso, para ele, os sonhos são realidades20 (VI: 135).

 

.Soñar es una ayuda práctica que los brujos inventaron. . dijo -. .No

eran tontos; sabían lo que estaban haciendo y buscaron la utilidad del

nagual entrenando a su tonal para que se dejara ir por un momento, por

así decirlo, y luego volviera a agarrarse. Esta frase no tiene sentido para

ti. Pero eso es lo que has estado haciendo hasta ahora: entrenándote para

dejarte ir sin perder la chaveta. Soñar es, por supuesto, la corona del

esfuerzo de los brujos, el uso máximo del nagual. (Castaneda RP: 327).



Para aprender a sonhar o guerreiro deve realizar outras três técnicas: a .marcha de poder., o .não-fazer. e o .romper as rotinas da vida.. Tais técnicas são .avenidas para aprender novos modos de perceber o mundo., dando ao guerreiro .uma antecipação de possibilidades incríveis de ação. (Castaneda RP: 327). A .marcha de poder., por exemplo, é um modo pelo qual o corpo conhece as coisas sem pensar nelas (Castaneda VI: 239). Ela serve para correr de noite. Permitindo a fluência do poder pessoal, este se mistura com o poder da noite que guia o corpo na escuridão (VI: 237).



.Romper as rotinas da vida. é rasgar o roteiro que define os nossos papéis no

mundo, ou seja, a nossa atuação; é variar os .estilos de criatividade, os modos de conhecimento. Um guerreiro é um caçador de poder, e um caçador digno é aquele que não tem rotinas, pois o seu propósito é .deixar de ser ele mesmo uma presa. (Castaneda VI: 115). Rompendo as rotinas da vida ele é livre, fluido, imprevisível. As rotinas são modos de atuação, porque é a ação pré-definida, pré-determinada, mecânica e monótona que nos torna previsíveis. Em outras palavras, as rotinas resultam da convenção de determinados modos de ação que metaforizam o sujeito, o referente, o significante, o ser estando em objeto, referido, significado, o estado do ser.



As rotinas são as cristalizações do fazer com que inventamos a familiaridade do mundo, e acabamos confundindo o mundo com o que fazemos dele. .Realidades [...] são o que fazemos delas, não o que elas fazem de nós, ou o que elas nos fazem fazer. (Wagner 1981: xix). Realidades são fazeres, não feitores ou feitos . ou fatos e valores, diferenciados pelas suas qualidades primeiras ou segundas. Fazer é atuar, construir, convencionar. .Fazer é o que te faz ser você e a mim ser eu. (Castaneda VI: 262). Ser membro comprometido de uma convenção é conhecer o seu fazer mundo, o que às vezes requer compactuar com o mascaramento e só enxergar o mundo como feitor ou feito.




[...] uma Cultura "naturalizada" e particularizada, e uma natureza

organizada e sistematizada, fazem parte de um mundo altamente

relativizado, no qual distinções cruciais entre "o que nós fazemos" e "o

que nós somos" sofreram uma erosão e um desmantelamento

substanciais, em conseqüência da troca de características. [...]

Sistematizamos sistemas e particularizamos particulares. (Wagner 1981:

67).



O acordo do fazer determina o mundo que habitamos. Tal acordo é muito poderoso. Porém, don Juan lembra que .o não-fazer é igualmente milagroso e poderoso. (Castaneda VI: 293). Não fazer o que se sabe fazer é a .clave do poder., o .primeiro passo deliberado para juntar poder. (VI: 251). Parar o mundo é, então, .parar de fazer. (VI: 263).



Não é fácil falar do .não-fazer., pois falar é .fazer.. O não-fazer é um sentir que .o corpo executa. e é ele que deve descobrir o poder e o sentir de .não-fazer. (Castaneda VI: 261). Na sua caça ao poder .o primeiro passo deliberado. de um guerreiro é .permitir ao corpo .não-fazer.. (VI: 251). O guerreiro é um ator que tirou a máscara vesga, a prótese.



Este ato é o .não-fazer. e está reservado a guerreiros muito fortes, ou seja, muito fluidos, que percebem que .o mundo é um sentir. (VI: 268). .Cuando uno no hace está sintiendo el mundo, y se siente a través de sus líneas (Castaneda VI: 268).



O guerreiro procura o balanço do Tonal no seu desejo de chegar à .totalidade de si mesmo.21. A excelência da tarefa requer um espírito impecável e humilde. Trata-se de uma luta, de um desafio, cuja base é aceitar-se como é e procurar nos próprios olhos a humildade, sendo impecável nos próprios atos e sentimentos (Castaneda RP: 17). A impecabilidade do guerreiro consiste em fazer as coisas o melhor que se pode, e mais (Castaneda EDJ: 39). O guerreiro é o dono (o proprietário) das suas escolhas; ele é um homem disposto a morrer por suas decisões, pois este é o modo máximo que encontra de se responsabilizar por elas (Castaneda VI: 74). As possibilidades de ser se atualizam no presente do estar: eis o modo de conhecimento que don Juan descreve como .caçar poder., sendo que o poder se dá de acordo com a impecabilidade do aprendiz (Castaneda RP: 318), ou seja, na medida em que ele age dando o melhor de si, como se cada ato fosse o último, compreendendo humildemente que o modo da ação (o ser estando) possui para ele mais valor que o seu produto (o estado do ser). Atuar só por atuar, responsabilizar-se por suas ações e assentir com a morte são os compromissos do guerreiro com o poder, do qual ele se torna escravo consciente, desmascarado. A impecabilidade é o único ato verdadeiramente livre, .a verdadeira medida do espírito de um guerreiro. (RP: 326). Um guerreiro inventa para si uma personalidade impecável, e não neurótica, histérica, culpada ou resolvida. O guerreiro é um homem que é impecável na sua intenção.




.Todo lo que tienes que hacer es instalar tu intención como aduana.

Cuando estés en el mundo del tonal, deberías de ser un tonal impecable;

ahí no hay tiempo para porquerías irracionales. Pero cuando estés en el

mundo del nagual, también deberías ser impecable; ahí no hay tiempo

para porquerías racionales. Para el guerrero, la intención es la puerta de

en medio. Se cierra por completo detrás de él cuando va o cuando viene.

(Castaneda RP: 230).



.Ter que crer que o mundo é misterioso e insondável é a expressão da predileção íntima de um guerreiro. (Castaneda RP: 156) e, portanto, este é o único compromisso definitivo com um modo de ação, aquele que o mantém em um .caminho com coração., que é uma viagem que basta por si mesma, sem esperança de lograr uma posição permanente (Castaneda EDJ: 252). Um guerreiro escolhe um .caminho com coração., um caminho de prazer, e o segue até o fim. Nisto o guerreiro se diferencia do homem comum, pois o guerreiro escolhe os elementos que formam seu caminho (Castaneda RA: 250), que fazem os mundos nos quais ele habita, que o habituam aos mundos; que o atualizam e lhe permitem ter um .ponto de vista., um corpo, uma individuação. Tais elementos são os fazeres, as positividades, as fachadas, os escudos chamados por Don Juan .resguardos., que protegem o guerreiro das .forças inexplicáveis. que anda intencionalmente buscando (RA: 250), da multiplicidade de agências que povoam os mundos (Tarde 2007b: 121), dos pontos de vista outrens que é perigoso atualizar (Viveiros de Castro 2001: 24).



Quando o poder não tem um nome, um sentido que o traduza ao nosso próprio olhar, que o atualize para nós, como é o .poder polissêmico. de que nos fala Duvignaud (1979: 65), o poder que o guerreiro caça, os significados são substituídos por estratégias (Castaneda RA: 209). É por isso que um .Tonal em bom estado. é prerrogativa na vida de um guerreiro, o compromisso que ele possui consigo mesmo. Já não se trata de ser um homem comum, um ator que .atua seus pensamentos., uma pessoa inventando personalidade (vestindo máscaras) e fazendo mundo, mas de se fazer guerreiro ao sustentar-se em um estado de animo autonomo dentro do qual se navega sem dependencia de nenhuma condição externa.