quarta-feira, 9 de julho de 2014

Tathagatha: aquele que é como o anterior


''O Fogo é o princípio de toda a vida'', Jacob Boheme, Signatura Rerum.

Em uma de suas teses, o Dr. William C. Kirk cumpriu seu propósito imediato, que era descobrir, até onde fosse possível, o que Heráclito de Éfeso havia dito efetivamente sobre o Fogo. Não nos propomos a resenhar este folheto, que está plenamente documentado e bem construído. O que queremos criticar é mais especificamente o propósito da erudição histórica em si mesma. Certamente, devemos saber o que se disse: mas de que utilidade será para nós tal conhecimento, se nao consideramos o significado do que se disse e pudermos aplicar este significado á nossa prórpria experiência? Aqui o Dr. Kirk tem que dizer pouco mais do que contém já estas significativas palavras: '' Heráclito é um dos filósofos gregos que buscavam explicar todo o universo em termos de alguma entidade básica. Depois de seu tempo,certamente, o Fogo decresceu em importância e os homens deixaram de buscar um único princípio que explicasse todos os fenômenos''. Isto é uma confissão de que os homens caíram ao nível desse empirismo diante do qual Platão se mostrava tão depreciativo, e também ao nível daqueles gregos a quem Plutarco ridicularizava porque já não podiam distinguir entre Apolo e Helios, entre a REALIDADE (to on) e o FENÔMENO, ''a um tal ponto sua PERCEPÇÃO SENSORIAL (aisthesis) perverteu seu poder de DISCRIMINAÇÃO (dianóia)''. No entanto, é apenas parcialmente verdadeiro que ''a importância do Fogo decresceu'', e apenas alguns homens abandonaram a busca de ''um princípio único''.

 O Dr. Kirk vê que Heráclito deve ter tido precursores, mas apenas se dá conta de que não poderia ter sido um filósofo no sentido moderno, e sim um filósofo no sentido antigo mais elevado do termo, segundo o qual o verdadeiro mestre é o que compreende e transmite uma doutrina de antiguidade immemorial e de origem divina e anônima... o Budha, por exemplo, proclama que ''seguiu a via antiga''(Samyutta Nikaya II.106), e disse que ''quem quer que pretenda que eu predico uma doutrina feita por mim mesmo e minha própria argumentação está adormecido'' (Majjhima Nikaya I.77)... Por isso o Dr. Kirk diz que Heráclito fala como quem propõe uma verdade evidente e geralmente aceita, não como alguém que argumenta com uma opinião pessoal. O que se destaca em Heráclito é, com efeito, inquestionavelmente ''ortodoxo'', ou seja, de acordo com a Philosophia Perennis (et Universalis), cujos ensinamentos são sempre e por todas as partes as mesmas.

 A concepção de um Fogo transcendente e universal, do qual nossos fogos são apenas pálidos reflexos, sobrevive nas palavras 'empíreo'' e ''éter''; esta última palavra deriva de ''aitho'', ''acender'' (sánscrito indh) e, incidentalmente, não carece de interesse que ''o tigre incandescente'' de Wiliam Blake nos recorde o ''aithones theres'' dos gregos, que se referíam assim ao cavalo, ao leão e á águia. O Rig Veda (II.34.5) fala de vacas de fogo (indhanvan = aithon). Para Ésquilo, Zeus ''estin aither'' (Fr. 65A; cf. Virgílio, Geórgicas II.325); no Antigo Testamento (Deuteronomio 4:24) e para São Paulo (Hebreus 12:29) ''nosso Deus é um fogo consumidor-devorador ( Noster Deus ignis (pyr) consumens est); e a epifania do Espírito é como ''línguas de fogo'': a conexão das línguas de fogo e a de falar em ''outras línguas'' também não é fortuita, e sim dependente da doutrina segunda a qual o Fogo (Agni) é o princípio da Fala (Vac) em Brhadarannyaka Upanishad I.3.8, etc.; Agni, o mesmo que o Daimon de Platão, aquilo que ''não cuida de nada, exceto da Verdade'', pois isso é ''satyavacah'' (Rg Veda Samhita III.26.9, VII.2.3). Cf. Satapatha Brahmana X.3.3.1, «O que o ocorre com alguém que toma conhecimento direto deste Fogo? Esse alguém prontamente se torna ''eloquente'', a 'fala'' não lhe falta, jorra em abundância''. Ver René Guenón, «O Dom das Línguas».

Agni (ignis, Fogo) é um dos principais e talvez o primeiro dos nomes de Deus no Rig Veda. Indra é ''metafisicamente Indha'' (aithon), um ''ACENDEDOR'', pois ''acende'' (inddha) os Sopros ou Inspirações (Prana, Satapatha Brahamana VI.1.1.2). O Cisne Solar (hamsa) ,''a quem vendo se vê o Todo'', é um ''Fogo deslumbrante'' (tejas-endham, Maitri Upanishad VI.35), e dele se fala como ''incendiado'' ou ''flamejante'' (lelayati, Brhadaranyaka Upanishad IV.3.7), igual ás línguas de Agni (lalayamanah en Mundaka Upanishad I.2.4). O Buddha, que pode considerar-se como um tipo humanizado de Agni ou Indragni, é um ''mestre consumado do elemento fogo'' (tejo-dhatum-kusalo,Vinaya-Pitaka 1.25). Mestre Eckhart pode falar também do ''céu imutável, chamado fogo ou o empíreo'' e dizer que o néctar (amrta, «mel», «água da vida») está negado a todos aqueles que não alcançam «essa flamejante inteligência celestial''

(...)

 Há uma série de textos sânscritos nos quais o Sol, ou o Indra Solar, ou o Saman, ou o Udgita identificado com o Sol ou o Fogo, se diz que arde ou flameja no alto e por cima da cabeça. Em Jaiminiya Upanishad Brahmana I 45.1-6, o IndraSolar ''nascido aqui de novo como um rishi, um fazedor de encantamentos (mantrakr ) para a guarda (guptyai) dos Vedas'', quando vem como o Udgitha ''sobe daqui para o Mundo da Luz Celestial (ita evordhvas svar udeti) e arde sobre a cabeça (upari murdhno lelayati); então se deve saber que ''Indra acabou de chegar''. Da mesma maneira em Jaiminiya Upanishad Brahmana I.51.3, o Saman, havendo sido expresso (srstam) como o Filho do Céu e da Terra, ''avançou até ali e se deteve ardendo em chamas ou ''flamejando'' (lelayad atisthat). Novamente, em Jaiminiya Upanishad Brahmana I. 55, onde o Sol (aquele que brilha ali) nasce do Ser e do Não-Ser, do Saman, e diz que ''Ele arde no alto (uparistat = upari murdhnas). Mas que primeiramente ''ele era inestável, parecia (adhruva iva); não tinha chama, parecia ''alelayad iva''); não ardia no alto (nordhvo 'tapat)''. Somente quando foi feito firme pelos deuses flamejou até em cima, para baixo e por todos os lados (ou seja, brilhou a partir do centro em todas as seis direções, sendo ele mesmo o 'raio sétimo e melhor''). O que se diz em Jaiminiya Upanishad Brahmana I 45.4-6, citado acima, se repete com referência ao ''Sopro'' (Prana), identificado com o Pastor Solar do Rg Veda Samhita I 164.31; o ''Sopro'', consequetemente: ''upari murdhno lelayati'. A este Sopro se dá o nome de ''O Udgítha que controla tudo agudo como uma chama'' (vasi diptagra udgitho yat Prana), e em Jaiminiya Upanishad Brahmana Jaiminiya II.4.3, certamente, ''agudo como chama" e torna-se assim também aquele que se faz um Compreensor D´Ele.

 Parece, então, que enquanto ''in divinis'' (adhidevatam) «sobre a cabeça» significa «no Céu», com referência a uma pessoa situada aqui embaixo (adhyatman) significa apenas sobre a cabeça. Na sequencia, encontramos no Lalita Vistara (I,p.3) que quando o Buddha está em Samadhi 'um Raio, chamado ''O Ornamento da Luz da Gnose' (jnanalokalankaram nama rasmih), procedente da abertura na protuberância craniana (usnisavivarantarat), joga sobre sua cabeça'' (uparistan murdhnah). Isto é manifestamente a prescrição iconográfica subjacente na apresentação de uma chama que sai da coronilla da cabeça em muitas das figuras tardias do Buddha. O Saddharma Pundarika pergunta: ''Por razão de que gnose (jnana) a protuberância craniana (murdhnyusnisa) do Tathagatha brilha (vibhati)? A resposta á isto se dá com mais frequencia no Bhagavad Gita XIV.11: ''Quando há gnose, a Luz brilha também por fora (prakasa upajayate jnanam yada) desde todos os chakras do corpo, e então se sabe que o ser está iluminado (vrddham sattvam), ou seja, que o homem se tornou ''aquilo que ele realmente é''. 

 Antes de concluir devemos fazer uma última alusão á outro contexto bem conhecido no qual uma CHAMA aparece ''SOBRE A CABEÇA''. O Raga Dipak é célebre como uma melodia que é literalmente uma ILUMINAÇÃO e que pode CONSUMIR O CANTOR COM SUA CHAMA. No texto hindi se diz que ''Dipak se recreia (keli karata = kridati), DIPAK É UM REI, que exibe a plenitude da beleza e sobre cuja cabeça brilha uma chama tremeluzente (digala bijotimastaka ujiyari). Tendo-se presente que o SPIRITUS SANCTUS É A LUZ INTELECTUAL, o «funkelin der sele» de Mestre Eckardt, e que o FOGO É O PRINCÍPIO DA FALA, podemos citar um notável paralelo de alguns dos contextos precedentes com os Fatos 2:3-4 dos Apóstolos, onde na forma de ''LÍNGUAS DE FOGO PARTIDAS, QUE POUSARAM SOBRE CADA UM DELES... E ELES COMEÇARAM A FALAR EM OUTRAS LÍNGUAS DESCONHECIDAS, SEGUNDO O ESPÍRITO LHES ORDENAVA''

 Consequentemente, nos foi possível rastrear aqui, não só a continuidade e universalidade da noção de ATIVIDADE DIVINA concebida como UM TIPO DE JOGO E DIVERTIMENTO, mas também de reconhecer no ''JOGO POÉTICO'' de um CHAMA TREMELUZENTE, ou de uma LUZ INTELECTUAL VIBRANTE, o símbolo adequado desta EPIFANIA DO ESPÍRITO.

KM

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