segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Mito da caverna

Conhecemos bem os elementos do ''Mito daCaverna'' de Platão (Livro VII de A República: a caverna, os prisioneiros acorrentados, a fogueira acesa do lado exterior , a libertação de um deles, a sua esonteada passagem da obscuridade para a luz (das sombras das coisas ás próprias coisas), com que Platão representa a transição ascencional do conhecimento sensível ao inteligível, da dóxa á episteme, da aparência á essência. Nessa passagem da dóxa á episteme, das imagens das coisas ás idéias, resguardada pelo símile do Sol Visionário como o Bem, este tornando visível aos olhos do espírito as essencias imutáveis e arquetípicas ---- assim como o astro luminoso descobre, para os olhos do corpo, aaparênia sensível das coisas ----, teríamos a metáfora da paidéia, da formação (Bildung) da alma humana. Mas só estas correspondências jamais esgotariam a riqueza do Mito da Caverna . Enquanto a interpretação ordinária sempre se apegou aos termos inicial e final da caminhada do prisioneiro, Martin Heidegger foi provavelmente o primeiro filósofo ocidental moderno a deslocar a importância primeira do mito ao esforço que acompanha a passagem efetuada tanto na transição do meio obscuro ao luminoso, quanto inversamente na transição do meio luminoso ao obscuro, quando o prisioneiro libertado (já habituado á claridade exterior ácaverna) volta para o interior da caverna para contar aos outros o que viu lá fora. Numa direção ou noutra, seja a do prisioneiro que se liberta, seja a do liberto que volta para a caverna-prisão, a fim de tentar convencer os seus ex-companheiros de que continuam presos, há sempre um consistente e dirigido esforço, seja para suportar o brilho da luz ou para de novo habituar-se ás sombras da caverna com os prisioneiros, e sempre, tanto num caso como no outro, o esforço é dirigido no sentido de ajustar as imagens distinguidas, dentro e fora, ás idéias com as quais deve concordar.

Considerando isto tudo, o subtexto que Heidegger consegue vislumbrar nas entrelinhas do mito da caverna, envolvem mais os dois acontecimentos interligados (saída da caverna e retorno para contar aos outros): um relativo á essência humana , concebida segundo uma idéia de formação da alma (paidéia), que liga o homem ao mundo superior da intuição intelectual direta (dos arquétipos) e não reflexiva, na medida em que estas se ''imprimem'' na sua alma e a modelam (bilden) - e outro relativo á ''essência da verdade'' , circunscrita pela visibilidade, pelo modo como as coisas se evidenciam , segundo um foco que as mostram sob determinada forma (idéia, eidos), numa transmutação da verdade como''desvelamento'' para a da verdade como concordância (omoíosis). Existe também outro aspecto mais oculto desta tradição filosófica e estética. A transmigração das almas, comum á distintas concepções culturais, ou a viagem da alma transmitida por Platão no livro X da República (Rohde: 1973, cap. I a VII) são noções inerentes á esta corrente, expandida pelos poetas. É este um aspecto do poetizar que excede o estético para avizinhar-se ao que Dodds (1960) denomina cultura xamanísta. O êxtasis e a omóiosis ou saída da alma do corpo, experiências descritas e promovidas pelos textos órficos e sua descendência (Lacarrière, 1989; Herrán, 1967) se acham no germen da exaltação do poeta como ser que tem parte na Divindade, consignação que reformularam os poetas românticos.
 
Platão parte, sem dúvida, da alethéia, pois para os gregos ''na origem, a ocultação, o fato de ''velar-se'' domina inteiramente a essência do ser... Confirma-o a própria ''caverna'' do mito, fechada apenas por um dos seus lados, dando passagem pelo outro á luz velada de uma fogueira acesa no exterior. Mas a função da luz, primeiro como fogo, e depois como sol, se torna preponderante. Não se inventa um dogma, mas se vela uma verdade e se produz uma sombra em favor dos olhos débeis. O iniciador não é um impostor, é um revelador, ou seja, segundo a expressão da palavra latina 'revelare'', um homem que VELA DE NOVO; É um criador de uma nova sombra. (Eliphas Levi "Dogma y Ritual de Alta Magia")) . DEVELAR é retirar o ´veu; REVELAR é voltar á colocá-lo. Nos textos sagrados da tradição semítica se enfatizou e reiterou exaustivamente que se trata de REVELAÇÃO, encriptação sobre incriptação, hieróglifo sobre hieróglifo, e que toda revelación implica imprescindiblemente una interpretación.
''a ídeia é o que tem o poder de brilhar. A essência da idéia consiste no brilho e na visibilidade. É isso que realiza a ''presença'', quer dizer, ''a essência daqulo que um ente é'' .
Para Heidegger, na linguagem de-mora o ser. O Sendo só pode se re-velar através da linguagem, se o pensamos ele ‘é’, pois o pensar aproxima o ser da Clareira (onde sua pre-sença contrapõe-se ao ente). A imagem de uma floresta assemelha-se à existência humana, vários são os caminhos possíveis para se chegar a uma Clareira.

A contemporaneidade enxerga a tudo com os olhos da técnica, o efeito conta mais que o sentido, há uma primazia da razão sobre o ser, que aliena o homem de seu sentido, "esta relação (o pertencer originário da palavra ao ser) permanece oculta sob o domínio da subjetividade que se apresenta como opinião pública" (Idem, Sobre o "Humanismo", 1973:349). A sociedade domina o significado possível de um termo e conduz seu uso a um fim específico, destruindo, assim, a essencialidade ontológica da língua. Os gregos nem ‘filosofia’ usavam para designar o pensar, a dimensão do agir ultrapassa as concepções de um tempo sobre si mesmo, as palavras quando perdem seu poder de ser, tornam-se técnicas, correspondem ao instituído (dicionários, gramáticas), não trazem mais ao homem a alteridade instauradora do real.

A consciência advém do fato da língua permitir identificar o ser como ente ‘ec-sistente’ (ser revelado) e dependente da linguagem. Mas o que entendemos como linguagem não nos leva ao ser, no máximo indica-nos o Caminho da Clareira. "A libertação da linguagem dos grilhões da Gramática e a abertura de um espaço essencial mais originário está reservado como tarefa para o poetizar"(Ibid., 1973:347), nossa relação com a linguagem deve ultra-subjetivar-se (ir além do sujeito), nada deve comandar a linguagem, pois na Clareira impera o inefável, ante o qual nossa língua e nossa identidade nada são.

 Lao Tse (570 a.C.), que segundo reza a tradição, foi um dos iniciadores do Taoismo, nos legou o "Tao Te King" quando aos 80 anos tentava sair da China e ao ser reconhecido pela guarda da fronteira foi intimado a escrever, pois até então se recusara a escrever sobre o Tao. Suas reflexões sobre o Tao, assim como o pensamento de Heidegger, inspiram ao ser o Caminho do re-encontro com si mesmo. O sentido do Tao é a escuta do apelo do ser, o Tao é tão inatingível quanto o Logos e como ele impera.

"O Tao é como um sonho cintilante. Sumindo, piscando, ele personifica formas e coisas. Parece recuar para longe e turvar-se. Contudo, há em seu âmago uma essência luminosa inconfundível" (Tao Te King, 21).

Fundamental o contato de Heidegger com o pensamento de Heráclito sobre o Logos, que é "o recolhimento que torna presente e manifesto tudo que é em sua totalidade enquanto ente. Logos é o nome que Heráclito dá ao Supra-sensível ou extra-sensorial" (HEIDEGGER, Hegel e os Gregos, 1973:408). Tao é um dos nomes que nomeia o Logos no Oriente. O Tao é um Caminho que nos leva de volta sem sair, um espanto demorado que se renova, um movimento que precisa do crescimento e não do deslocamento e um crescimento que precisa de si mesmo.

Quando fala do Caminho do Campo, Heidegger parece falar do Logos. "Do Logos com que sempre lidam se afastam, e por isso as coisas que encontram lhes parecem estranhas" (Idem, §72). Nossa noção de tempo se confunde com a de espaço, o percurso do caminho não pode ser medido ou calculado; a própria representação que damos ao espaço se curva na totalidade de um círculo, só o espaço enquanto ente tem fim: "Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo" (Idem, §103). A reversidade do Caminho "assemelha-se ao tensionar do arco. O que está alto é trazido para baixo, e o baixo, puxado para cima. O comprimento é diminuído, e a largura, expandida" (Tao Te King, 77). Chega a ser possível imaginar um diálogo entre Lao Tse e Heráclito, que por sinal eram contemporâneos, mas o que esta proximidade nos diz?

"Pensando, de quando em vez, com os mesmos textos ou, em tentativas próprias, o pensamento, sempre de novo, anda na via que o Caminho do Campo traça pela campina.(…) O Caminho acolhe tudo que vigora à sua volta e restitui o seu a todos que o percorrem. Os mesmos campos e as mesmas encostas dos prados escoltam o Caminho do Campo em cada estação do ano, mas com uma proximidade sempre nova." (HEIDEGGER, O Caminho do Campo, s/d:46-7)


Post Scriptum

As pessoas gostam do misterioso. O estudo da esfera do espírito poderia coloca-las diante de muitas portas fechadas. Porque então as pessoas evitam tudo que lhes é desconhecido? Porque nas escolas lhes foi dito: ''PROCEDEI COMO TODOS!''.
Dirigi o espírito ao desconhecido! Tal aspiração poduz novas formas de pensamento.

O Ensinamento pressupõe não somente uma consciência aberta, mas tbm o desejo de se dedicar, degrau por degrau á sua aplicação. É impossível pensar que uma mente distraída possa por convencioalidades possa aceitar o Ensinamento. As pessoas estranhas ao Espírito não percebem a utilidade do Livro. Estas pessoas não são necessárias, mesmo quando curiosas.

Elas dirão: ''Como utilizar estas sementes espalhadas?'' Elas não podem nem mesmo admitir que, além de seu prórpio sistema, possa existir ainda outro. O ''cálculo energético'' do trabalho tem seu método, , mas o pensamento depende até mesmo das condições externas da vida.


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