sábado, 8 de fevereiro de 2014

Conhecimento direto e intuição intelectual

 
Visão direta das coisas em sua luz verdadeira sem passar pela intermediação do mental (manas). O intelecto puro, capaz da chamada "intuição intelectual" ou "inspiração" é um órgão por assim dizê-lo de um nível supra-humano, "posto que é uma participação direta da inteligência universal", segundo René Guénon.

A
intuição intelectual tem, portanto, por eixo à intuição enquanto captação direta da Luz inteligível durante sua passagem ao plano supra-individual, não ao plano da faculdade reflexiva do ser. Graças à intuição, segundo Ibn Arabi, "deixa-se de fazer raciocínios e compreende-se pela luz da intuição" (Tratado da Unidade)


René Guénon: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO DAS DOUTRINAS HINDUS
As verdades metafísicas não podem ser concebidas a não ser por uma faculdade que já não é da ordem individual e que o caráter imediato de sua operação permite chamar de intuitiva; mas, certamente, na condição de acrescentar que ela não tem absolutamente nada a ver com o que certos poetas malditos e
filósofos contemporâneos chamam de intuição ou subjetividade infinita, faculdade puramente sensitiva e vital que está propriamente debaixo da razão e não por cima dela. É preciso dizer, para uma maior precisão, que a faculdade de que falamos aqui é a intuição intelectual metafísica e não esta subjetividade inferior dos atuais fazedores de versos.

Esta percepção direta da verdade, esta intuição intelectual e supra-racional da qual os modernos parecem ter perdido até a simples noção, é verdadeiramente o
conhecimento do coração. Tal conhecimento é em si mesmo incomunicável, e é preciso havê-lo realizado, pelo menos em certa medida, para saber o que é verdadeiramente (...) (todo conhecimento particular) é uma participação mais ou menos distante do conhecimento por excelência, assim como a luz da lua só é um pálido reflexo da do sol (...) o conhecimento do coração é a percepção direta da luz inteligível, essa luz do Verbo com ''V'' maiúsculo de que fala São João no começo de seu Evangelho e não a verborragia poética de poetastros desarranjados.

Frithjof Schuon: O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
Sempre em conexão com a
inteligência, precisamos focalizar ainda uma outra quaternidade, cujos elementos constitutivos são para as quatro qualidades descritas o que as regiões intermediárias são para os pontos cardeais. Esses elementos são, por um lado, a razão e a intuição e, por outro, a imaginação e a memória, o que corresponde aos eixos norte-sul e leste-oeste. A razão não gera a intelecção, mas a coesão, a interpretação, a ordem, a conclusão. A intuição, que é o seu oposto complementar, gera a percepção imediata, embora velada e mais frequentemente aproximativa, sempre no plano dos fenômenos externos ou internos, pois trata-se, aqui, do mental e não do puro Intelecto. Quanto à imaginação e à memória, a primeira é prospectiva e gera a invenção, a criação, a produção a um grau qualquer; a segunda, pelo contrário, é retrospectiva e gera a conservação, o enraizamento, a continuidade empírica. Poderíamos acrescentar aqui que a qualidade da razão é a justiça, que é objetiva; a da imaginação é a vigilância, que é prospectiva; e a da memória é a gratidão, que é retrospectiva.

François Chenique: SARÇA ARDENTE
Vimos que o
conhecimento metafísico, que consideramos com São Boaventura como sendo de ordem sobrenatural1, se efetua por um "poder" de ordem supra-humano que é o intelecto, e isto em uma "iluminação"2 que alcança uma "intuição intelectual".

Quem diz "intuição" diz
conhecimento imediato, logo sem intermediário e forçosamente infalível. Em sua ordem o conhecimento intelectual é análogo à sensação que se opera também sem intermediário. O intelecto percebe na ordem do conhecimento metafísico, e, como todo conhecimento, o conhecimento metafísico comporta a "identificação" do sujeito e do objeto. Aristóteles diz no Livro De Anima que a "alma é em um sentido todas as coisas", pois "o ato do sensível e aquele do sentindo são um só e mesmo ato". Na sensação, "sensível" e "sentindo" têm um ato comum "subjetivado" no último; na intelecção, o intelecto e o inteligível se unem em uma identificação muito mais profunda dos dois termos. Tomas de Aquino retomou a doutrina de Aristóteles e a precisou pelos diversos "graus de identificação" que variam segundo a natureza dos seres conhecentes. A doutrina da Escola se resume no adágio célebre: "Intellectus in actu est intellectum in actu (intelecto em ato é o inteligível em ato) (I Sentenças). No conhecimento perfeito, Conhecimento, Conhecedor e Conhecido nada mais são que um só.

Falamos de "intuição intelectual". Em
realidade a intuição verdadeira é sempre de ordem intelectual, mas o abuso do qual esta palavra foi objeto exige que lhe adjunte um qualificativo.


 

Carlos Castaneda:
Ele o definia como um estado natural da percepção humana, no qual os pensamentos são bloqueados e todas as faculdades do homem operam de um nível de consciência que não requer a utilização do nosso sistema cognitívo diário.
Dizia que o corpo funciona normalmente, mas a percepção se torna mais aguda. As decisões são instantâneas e parecem provir de um tipo especial de conhecimento que é destituído de verbalizações mentais.

De acordo com Dom Juan, a percepção humana, funcionando em condição de silêncio interior, é capaz de atingir níveis indescritíveis. Alguns daqueles níveis de percepção são mundos em si e de modo algum são como os mundos alcançados através das práticas do sonho lúcido. Eles são indescritíveis e inexplicáveis em termos dos paradígmas lineares que o estado habitual da percepção humana emprega para explicar o universo.

No entendimento de Dom Juan, o silêncio interior é a matriz para um passo gigantesco de evolução: o conhecimento silencioso ou o nível da consciência humana no qual o saber é automático e instantâneo. Nesse nível o conhecimento não é produto da cogitação cerebral, da indução e da dedução lógica ou de generalizações baseadas em semelhanças e diferenças. No nível do conhecimento silencioso não existe nada a priori, é iminentemente agora. Peças complexas de informação poderiam ser captadas sem quaisquer preliminares cognitivas.

Dom Juan acreditava que o conhecimento silencioso era insinuado para o homem primitivo, mas que o homem primitivo não era realmente o possuidor do conhecimento silencioso. Tal insinuação, no entanto, era infinitamente mais forte do que a que o homem moderno experimenta, na qual a carga de conhecimento é produto de aprendizado rotineiro. É um axioma da cultura xamanica tolteca o fato de que, embora tenhamos perdido aquela insinuação, a avenida que conduz ao conhecimento silencioso estará sempre aberta ao homem através do silencio interior.

Dom Juan ensinava a linha inflexível da sua linhagem: que o silêncio interior deve ser obtido através de uma pressão consistente de disciplina. Precisa ser acumulado ou armazenado pouco a pouco, segundo por segundo. Em outras palavras, a pessoa precisa se forçar a ficar em silêncio, mesmo que seja apenas por alguns segundos. De acordo com Dom Juan, era conhecimento comum entre os antigos que, se a pessoa persiste, a persistência supera o hábito e, assim, é possível chegar a um limiar de segundos ou minutos acumulados, que difere de pessoa para pessoa. Se, para um determinado indivíduo, o limiar do silêncio interior for de, por exemplo, dez minutos, uma vez que esse limiar é atingido, o silêncio interior acontece por si mesmo, espontaneamente por assim dizer.
 Quando paramos o mundo, o mundo que paramos geralmente é o que é mantido pelo diálogo mental interno. Uma vez que você para o blá-blá-blá interno você para de manter este mundo. A descrição entra em colapso. É quando começa a mudança....
Don Juan chamava isso de ''CAMBIAR (mudar) DE VELOCIDAD''

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Kitaro Nishida

 
O ritmo da verdade é como uma fortaleza inquebrantável. A aspiração verdadeira para a conscientização das possibilidades mais elevadas deveria encher a maior parte da vida de um homem, como uma mais necessária e atraente ocupação. Mas a luz da verdade é substituída pelas fórmulas convencionais das religiões e as ilusões de facilidade dos preguiçosos; e o homem, que é por vocação um pensador, curva-se ante um canto escuro, e cobre-se com idéias de realizações fáceis e desprezo pelo pensamento avançado, sem nem mesmo saber que nestas imagens de facilidade apenas projeta seu medo. Repeti isto a todos os que dormem na escuridão do convencionalismo cômodo e na ilusão dos vendedores de facilidade.
 
 
 

Todas as Iogas precedentes tomavam como base uma certa qualidade de vida; mas agora é necessária uma Ioga abrangendo a essência de toda a vida. Tudo incluindo e nada evitando, exatamente como relatava a lenda bíblica sobre os jovens que não se queimavam quando, corajosamente, se sacrificavam na fogueira e, por isso, recebiam o poder.
 
(...)
 
 
 

O eminente filósofo japonês Kitaro Nishida (1870-1945), contribuiu para o Zen-budismo de maneira análago á contribuição de Jaques Maritain em favor da filosofia católica. Construiu, dentro de sua própria tradição mística e na base das suas intuições tradicionais e espirituais, filosofia que fala ao mesmo tempo ao homem moderno - inclusive o do Ocidente - e permanece aberta á mais elevada sabedoria que procura em Deus. O Dr. Daisetz Suzuki disse com razão que é difícil compreender Nishida se não se tem algum conhecimento do Zen. Por outro lado, certas noções de fenomenalogia existencialista poderão servir como preparação para compreender o único livro de Nishida até agora traduzido para o inglês - sua primeira obra - A Study of God.


 
Como Merleau-Ponty, Nishida se preocupa com a estrutura primária da consciência e procura preservar a unidade existente entre o consciente e o mundo externo nele refletido. O ponto de partida para Nishida é a ''experiência pura'', ''experiência imediata'' de unidade indiferenciada que, de fato, é o oposto do ponto de partida de Descartes em seu cogito.


 
Descartes acha sua intuição básica na autoconsciência refletida do sujeito individual pensante, mantendo-se, por assim dizer, fora e separada de outros objetos de conhecimento. Do ponto de partida do pensamento refletido, o sujeito toma os conceitos abstratos de si e de seu ser como objetos - cogito ergo sum. Para Nishida (como, noutro contexto, para Maritain) o que vem em primeiro lugar é a intuição ''unificante da unidade básica do sujeito e do objeto no ser - ou uma profunda apreensão da vida em sua existencialidade concreta ''na base do consciente''. Essa unidade básica não é um conceito abstrato mas é o próprio ser - carregado do dinamismo do espírito. Nesse sentido, poderíamos adiantar que o ponto de partida de Nishida é um ''sum ergo cogito''. Contudo, isso deve ser tomado como o tentador grão de sal do Zen: ''Eu sou'', mas quem é esse ''eu''? A realidade fundamental não é nem interna nem externa, nem objetiva, nem subjetiva. Antecipa toda diferenciação e contradição. O Zen o denomina ''Vazio'' (Sunnyata). A madura apreensão do vazio primordial em que todas as coisas são uma só é ''prajna'' ou sabedoria.

 
 
Post Scriptum

 
Daisetz Suzuki (1870) propôs que passássemos finalmente da atitude convencional para a "metafísica". Ele descreve:


O método científico no estudo da realidade é ver um objeto do ponto de vista objetivo. Por exemplo: uma flor em cima da mesa à nossa frente, pode ser objeto de estudo científico. Os cientistas a submeterão a todo tipo de análises: botânica, química, física, etc. – e nos dirão tudo o que descobriram sobre a flor do ponto de vista de seus respectivos ângulos de estudo; dirão que o estudo da flor foi exaustivo e que nada mais há a dizer sobre ela, a não ser que, por acaso, seja descoberto algo novo no decorrer de muitas análises.

Portanto, a principal característica que distingue a abordagem científica é a descrição do objeto, é discorrer sobre ele, é analisá-lo sob vários ângulos. Mas ainda permanece a questão: ‘Será que o objeto todo foi de fato apreendido nessa rede?’ E eu diria decididamente que não, porque o objeto que pensamos ter apreendido nada mais é do que a soma de suas abstrações, e não o objeto em si mesmo…

O processo científico mata o objeto, assassina-o e, ao dissecar o cadáver e juntar as partes outra vez, tenta reproduzir o corpo vivo original, e esse efeito é impossível.


BERENDT, Joachim-Ernst. Nada Brahma, A música e o universo da consciência. Editora Cultrix. pp. 244-5




Post Scriptum

 


 
 

 



 
 
O Japão de Nishida



 
Nishida Kitaro (1870-1945) nasceu no começo da Era Meiji (1868-1912), quando o Japão abriu suas portas para o Ocidente depois de dois séculos e meio de isolamento. Neste momento, o Japão estava em uma situação difícil causada pelos outros países, pois os Estados Unidos estavam se expandindo a oeste de seu continente, a França e a Inglaterra estavam se expandindo na Ásia e na África e seus mais próximos vizinhos eram a China e a Rússia, países de proporções continentais, assim só havia dois destinos para o povo japonês: se tornar um peão do imperialismo europeu e americano ou se tornar um império asiático à sua forma, através de uma enorme reconstrução social, política, econômica e científica. E, como sabemos, a segunda opção foi a tomada.

Já no incipiente século XX, não havia mais volta desta decisão. Pois, os japoneses haviam derrotado a China (1894-1895) e a Rússia (1904-1905) em duas guerras e feito um grande pacto com a Inglaterra. Pelo crescimento da sociedade industrial do Japão, foi necessário cada vez mais expandir sua influência e poder pela Ásia e Pacífico por matérias-primas. Desta forma, reforçou seu poder imperialista e se envolvendo em várias seqüências de eventos iria desencadear na Segunda Guerra Mundial.
 

Os primeiros intelectuais da era Meiji esperavam ser possível desenvolver o país, ou seja, modernizá-lo sem mudar seu sistema de valor cultura, como Sakuma Shosan (1811-1864) expressava em sua famosa frase: "técnicas ocidentais, moral oriental". Mas, quanto mais se aprofundava os estudos sobre o pensamento ocidental, mais os estudiosos ficavam céticos quanto a questão de a moral e da religião não acompanharem as mudanças sócio-político-econômicas.


O problema do Japão e a solução de Nishida
Neste momento da história do Japão, não se há resposta para a questão de o que se fazer com a moral e a religião japonesa, uns pensavam ainda como Sakuma Shosan, outros ainda diziam para o Japão se cristianizar, pois, no Ocidente, cristianismo e ciência se desenvolveram tão intimamente que já estariam interligados. Fato é que o Japão não poderia mais ter uma face da ciência e tecnologia e outra para os valores tradicionais japoneses, pois sofreria de uma esquizofrenia cultural, a "Terra do Sol Nascente" precisava ter um rosto apenas, mas não uma mera escolha de lados e exclusão do outro e, sim, um rosto que abraçasse a ambos os lados, a ambas as idéias. E este rosto foi mostrado primeiramente em "A Study of Good" (1911) por Nishida Kitaro.

Em seu livro, se viu deparado não com um problema cultural, mas um problema fundamental para a filosofia, o Japão não teria que se tornar cristão para se desenvolver melhor, isto mesmo seria um erro ocidental em relação ao fato e o valor, respectivamente, a como vê seu empirismo e sua moralidade (religião e arte).

Nishida viu que esta separação entre fato e valor, empirismo e moralidade era já uma grande divergência entre o pensamento japonês e o ocidental. Assim, bastava, como solução, juntá-las de volta, mas, para isto, Nishida usou a noção de "experiência pura", que achou nos escritos de William James, para "articular a fluência da experiência comum através da unidade que está sob ambas as empresas da experiência e dos valores"[1]. No fundo, ciência e moralidade compartilham o mesmo caminho ("a vontade") para a unidade, o que Nishida chama de "intuição intelectual".
 

Desta maneira, o dilema fato/valor também satisfez às idéias do Zen budismo, pois traz a unidade original da experiência de volta. Ou seja, "A Study of Good" conseguiu satisfazer a muitos unindo tais extremos, acabou por se tornar popular entre os intelectuais japoneses, pois fez da filosofia algo japonês e, assim, nasceu a Escola de Kyoto.

[1]KASULIS, Thomas in: CARTER, Robert E. The nothingness beyond god. Paragon house. 1997. P. 13
 

 
(...)

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Agni Yoga

Nós vos ensinamos a captar o pensamento básico, sem sucumbir ao aspecto externo da expressão. O mais importante é evitar a repetição. Se o receptor do espírito estiver pronto, cada pensamento penetrará como uma flecha. Mas se a decomposição do tecido já obstruiu os canais dos centros, a Agni Yoga é inascessível.

Certamente o Ensinamento da Agni Yoga será útil a cada um, mesmo se ele não alcançar as manifestações espirituais. Os princípios externos da Agni Yoga, em qualquer caso, sustentarão a saúde, fortalecerão a memória e purificarão o pensamento.

Mas onde ficarão  os sinais das conquistas que elevam o espírito, além das manifestações mais espantosas e auto-evidentes de vigor e rejuvenescimento? Primeiramente, serão acesos os fogos dos centros, depois será ouvida a Voz do Silêncio, e no final manifestar-se-á externamente a chama psíquica que, de certo modo, une a consciência pessoal com a consciência do espaço. Então, já será possível o contato com as belas, perigosas e mais sutis energias, com tudo o que transforma a vida e elimina o conceito de morte.

A dificuldade de contato com o incomum exige, ás vezes, condições especiais de vida. O sono diminui muito e algumas posições podem  tornar-se difíceis, variando com o praticante. A tensão dos músculos cansa o trabalho do espírito e cada envenenamento da aura pode causar sofrimento. Certamente, isto pode ser evitado livrando-se da tensão residual diária dos músculos com relaxamentos e respirações e buscando sempre a prática diária do silêncio interno para não sair da corrente mais alta.

.......................é mais do que um sinal de avanço para a Agni Yoga quando podeis aspirar profunda e livremente nas ''alturas''. Então, está acessível o caminho para as camadas mais altas do astral, desde que a consciência o permita.

No caminho para a Agni Yoga  pode estar somente aquele que considera insignificantes seus conhecimentos; que raramente lembra suas distinções feitas pelas pessoas; que não participou das manifestações falsas de religião ou deturpações virtuais pop em busca de audiência; que pode, a cada ano, renovar a semeadura do jardim sem maiores esforços, sorrindo á tempestade que levou os trabalhos anteriores; que perdeu a capacidade de caluniar; que intensificou sua aspiração na busca do invisível supremo e rejeitou comungar com todos os traidores da verdade e vulgarizadores ignorantes; aquele que se envolveu com o pensamento puro que forma uma aura invencível.

Bruchstücke: a escrita fragmentária

É com a escrita em fragmentos que Novalis e os irmãos Schlegel inauguraram o romantismo alemão no primeiro número da revista Athenäeum, editada de 1798 a 1800. Este primeiro número foi reservado, pelos irmãos Schlegel, quase exclusivamente a Novalis. Novalis é o epíteto adotado por Friedrich Von Hardenberg neste primeiro número da revista Atheäeum, que também consiste praticamente em sua primeira publicação, com exceção da publicação de um poema de adolescência. Hardenberg não escolheu por acaso seu epíteto e o título de sua obra. "Novali" ou "Von Rode" foi um sobrenome adotado por antepassados de Hardenberg, do século XII, barões do burgo de Hardenberge, em alusão a sua propriedade Groszenrode, e remetem ao verbo alemão roden, que significa arrotear, desbravar, desmoitar e ao substantivo Rodeland, traduzido como arrotéia, noval, terra preparada para o primeiro cultivo. A partir da elucidação do sentido do epíteto Novalis não é difícil perceber a sua relação com o título da primeira obra de Hardenberg, Pólen (Blütenstaub). Em um fragmento de Pólen Novalis afirma: "Fragmentos desta espécie são sementes literárias" (Frag. 114, p. 92).

Com certeza não foi somente pelas afinidades de significado entre os termos Novalis e Pólen, que Friedrich Schlegel decidiu não excluir nenhum fragmento de Pólen, mas por vislumbrar uma unidade de sentido que dava a coletânea um valor de obra. Entretanto, esta percepção não impediu Schlegel de intervir na organização dos fragmentos ora juntando-os ou dividindo-os, com intenção de viabilizar plenamente o projeto original do pensador que escreve em fragmentos – não somente Novalis, mas ele próprio – de reservar para cada fragmento uma suficiência de significado; ora intercalando seus próprios fragmentos entre os de Novalis, conforme ele mesmo diz: "Vocês vêem que tomei dele com humildade. Encontrei também nos meus alguns que são suficientemente fluorescentes [Blüthe] para poder devolvê-los a ele, para que a ação recíproca fraternal fique bem perfeita" (Carta de de março de 1798 de Friedrich a Wilhelm Schlegel).

Notamos através destas palavras de Schlegel que ele talvez considerasse seus fragmentos como fluorescências, cujos sentidos remetiam e deixavam ressoar os sentidos das "sementes espalhadas" de Novalis.

Numa carta a August Coelistin Just de 26 de dezembro de 1798, Novalis chama seus fragmentos de "pensamentos soltos", e "começos de interessantes seqüências de pensamentos – textos para o pensar", e numa carta de 26 de dezembro de 1797 ele os chama Bruchstücke, palavra alemã equivalente a Fragmente de origem latina. Bruchstück pode ser traduzido por "pedaço", "fragmento". Imediatamente estes termos concernem ao caráter de algo que remete a uma totalidade, algo que é parte de um todo.

Ora, enquanto forma textual pode-se admitir dois tipos de fragmentos, o que anuncia e prepara uma obra propriamente dita, completa e acabada e que, então, se identifica ao esboço ou esquema de um escrito mais amplo, e outro, o fragmento como única forma possível de expressão de um sentido que não se manifesta ou se concede por completo, mas de relance e alusivamente. Nesta via, o fragmento é da mesma natureza que a unidade de sentido que ele expressa: aberto e inacabado.

A unidade de sentido que se condensa no fragmento remete a um fundo inacabado e incompleto que coincide com o fundo em contínuo devir do próprio homem, conforme afirma Novalis no fragmento número 318 de outra coletânea intitulada Fragmentos III: "Como fragmento o imperfeito aparece ainda do modo mais suportável – e portanto essa forma de comunicação é recomendável para aquilo que ainda não está pronto no todo – e no entanto tem alguns pontos de vista notáveis para dar". Novalis faz referência à capacidade própria do fragmento de encarnar a incompletude do que está em devir, representado na forma temporal do imperfeito, do que se iniciou e ainda não se concluiu, percebido em primeira instância e imediatamente como inacabamento daquele que pensa.

Para Novalis, pensar é, antes de tudo, caminhar, e o fragmento, enquanto expressão do pensar é, essencialmente, indicador de caminho. A relação com a verdade é uma busca, um caminhar, que tem na filosofia sua origem, seus princípios enquanto pistas e orientações de partida. Podemos então concluir que quando Novalis se refere aos seus breves escritos como "sementes literárias" (Pólen. Fragmento 114, p. 92), ele os vislumbra como germes de fluorescências anunciadas cuja eclosão demarca trilhas existenciais.

Nietzsche também escreve em fragmentos. Sua obra Humano demasiadamente Humano é a primeira no qual ele adota de modo inequívoco, consciente e estilizado o gênero fragmentário, e o assume como aforístico. Em uma outra obra (Genealogia da Moral, III, § 8), Nietzsche associa o estilo aforístico ao caráter essencialmente inacabado e aberto de um sentido veiculado pela escrita. O aforismo dispõe o pensamento à decifração ou a interpretação do sentido, que é sempre múltiplo e ressoa para além de seu comprometimento com um sistema ou uma época. Ele reivindica por sua própria natureza a arte da interpretação, que faz dele, na verdade, o ponto de partida de um sentido em devir. Segundo o dicionário Les notions philosophiques, o termo "aforismo" deriva do grego aphorismos, que significa "o que se separa do resto e determina". No mesmo verbete o dicionário se refere ao aforismo como "proposições de ordem prática que encerram um preceito geral, uma verdade do tipo fragmentário mais universal".

Mas o curioso é que o aforismo concerne à existência humana e aborda o homem sobretudo, por seu caráter enigmático. O pensamento é mobilizado para decifrar um sentido. Contudo, a interpretação, ao invés de ponto de chegada, é, na verdade, ponto de partida de múltiplos sentidos, revelando, então, sua natureza artística, inventiva e conformadora.

 

Continua...

Vós vistes como um regato torna-se uma torrente poderosa, quando ele incorpora a si todas as cachoeiras e todas as correntezas, transformando-as numa só corrente. Também para o Agni Yogue não existe um conhecimento mau ou bom; ele absorve em si todo conhecimento e encontra utilidade para tudo.

É necessário acostumar-se á utilização de todos os tipos de conhecimento. Que esfera podemos considerar abaixo de nós? Como podemos estar confiantes, se nós mesmos rejeitamos o material necessário.

Quando fordes chamados de sonhadores, dizei: ''Conhecemos somente a ação''. Quando vos perguntarem: ''Com que afirmas o Ensinmento?'', respondei: ''Somente pela vida''. Quando vos desafiarem a defender os Mandamentos, dizei: ''É impossível responder á ignorância''. Quando forem injuriar o Mestre, dizei: ''Ainda esta noite voltarás a pensar sobre seu erro irremediável''.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Sobram sábios imaginários...

 — Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis, no Egito, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam Íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egito era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egito, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Amon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma e das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más. Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: «Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória. — «Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por conseqüência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros!




Jacques Derrida, A Farmácia de Platão

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Nietzsche e Heráclito

Quando acompanhamos o pensamento de Nietzsche sobre os filósofos préplatônicos, como ele chama os pré-socráticos, percebemos, tanto quanto Paolo D’Iorio, o tom autobiográfico das suas considerações, sobretudo quando se trata de Heráclito.

O capítulo V de A filosofia na idade trágica dos gregos se inicia com a diferenciação entre as concepções sobre a existência de Heráclito e de Anaximandro. Nietzsche deixa claro que Heráclito contempla o devir enquanto a visão de Anaximandro é obscurecida pelo pressuposto moral de dois mundos, o do devir (da eterna expiação da culpa do existir) e do indeterminado (Ápeiron). Entre os filósofos gregos, Heráclito é talvez o único, para Nietzsche, a ter contemplado a existência tal qual é: domínio que "nada mostra de permanente, de indestrutível, nenhum baluarte no seu fluxo" (A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, § 5), por ser dotado da faculdade da intuição.

Compreender a intuição como modo por excelência de apreensão do fluxo incessante do vir-a-ser é aceitar, como seu meio mais apropriado de expressão, um discurso incompleto, truncado e enigmático. Através de seu estilo lacunar e obscuro, Heráclito diz o que se pode e como se pode dizer para os que podem ouvir. A escrita de Heráclito aflui do limiar entre devir e representação e manifesta, então, a própria limitação do pensamento na incessante busca de apropriação do que é substancialmente fugaz e translúcido.

Nietzsche enaltece o estilo de Heráclito ao dizer que "... é provável que jamais um homem em tempo algum, tenha escrito de um modo mais claro e luminoso" (A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, § 7). Neste trecho, percebemos o quanto ele admirava no filósofo grego a concisão e a brevidade e não considerava absolutamente o caráter enigmático de sua escrita como conseqüência da intenção do autor de não ser preciso e claro.


A consciência da incapacidade de abarcar a existência, até mesmo pelo pensamento, é acompanhada de um profundo sentimento de inutilidade e de horror, que somente pode ser transfigurado em contemplação impassível e sublime por força de um empreendimento espiritual que, aliciando a capacidade intuitiva, configura em imagens reluzentes o curso fugidio da existência. Livre do assombro imediato, o pensamento é instigado a deixar ressoar os múltiplos sentidos que assolam as possibilidades infinitas anunciadas pelo devir.

Ao mesmo tempo que Nietzsche deixa claro que Heráclito expressa uma verdade incompreensível para os espíritos superficiais ao dizer "... que se trata de um estilo muito lacônico e, por isso, obscuro para leitores muito apressados" (A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, § 7), ele sustenta que para os espíritos à altura de Heráclito, ou seja, capazes da contemplação estética do devir, ressoa, das lacunas e obscuridades do pensamento do filósofo grego, um sentido fundamental. Na ausência desta grandeza espiritual resta somente o vazio, o qual os espíritos apressados e superficiais tendem a traduzir por falta de nitidez e confusão. Nietzsche assevera, através das palavras de um dos representantes do romantismo alemão, Jean Paul Richter, cuja escrita labiríntica e fragmentária é característica, que o estilo lacunar e breve tem ainda a utilidade fundamental de afastar as interpretações vulgares e medíocres (Nachgelassene Fragmente, p.832). Ora, Jean Paul é conhecido, sobretudo, como autor de obras de estilo romanesco. Porém Georges Gusdorf, se baseando no comentário de um crítico francês da obra de Jean Paul, esclarece que apesar das aparências Jean Paul procedeu pela via do fragmento para compor seus livros (Le romantisme II – L’homme et la nature, 2ª parte, cap. XII, p. 453). Para o leitor desatendo parece que os romances foram compostos de um único fôlego. Na realidade, eles constituem verdadeiros mosaicos, porquanto formados de pensamentos esparsos, elaborados em períodos diversos e antes da composição da obra.

Tomamos a liberdade de sustentar esta mesma opinião sobre a composição dos escritos de juventude de Nietzsche e, conseqüentemente, que sua admiração pelo estilo de Heráclito fundamenta não somente o gênero aforístico, adotado em suas obras posteriores, mas o próprio modo de composição dos escritos da época de A Filosofia na Idade Trágica dos gregos. Do período de juventude existem inúmeros fragmentos. Destes, alguns podem ser reduzidos a rabiscos, anotações ou esquemas de escritos contemporâneos e não chegam, muitas vezes, a formar uma frase e muito menos expressar um sentido. Outros manifestam um caráter auto-suficiente, aberto e prenhe de significações, consoante sua forma asistemática e enigmática. Alguns destes foram inseridos, sob sua forma original, em escritos mais completos. Por sua suficiência, eles guardam, de modo concentrado e profundo, o sentido em torno do qual gira todo parágrafo ou capítulo. Ademais, muitos escritos de Nietzsche não podem ser considerados análises elucidativas de conceitos ou sentidos chaves, mas são compostos de assertivas enigmáticas, que, apesar de sua independência e seu isolamento, se complementam mutuamente sem, no entanto, se elucidarem completamente. Podemos citar como exemplo "A Disputa de Homero", "O Estado Grego", textos contidos nos Cinco Prefácios para Cinco Livros não escritos. Ao defender este ponto de vista, concordamos com G. Gusdorf ao dizer que o aforismo caracteriza mais um gênero de pensamento do que um estilo de escrita. Mais precisamente, o modo, por excelência, de apreensão da verdade. Segundo Gusdorf o aforismo, com sua brevidade, sua dispersão, sua pluralidade de sentidos e seu mistério, manifesta os limites de apreensão da verdade por parte do pensamento e, ao mesmo tempo, então, a forma fugidia como a verdade se oferece à representação. Somos impelidos neste ponto a resgatar o que dissemos acima a partir das considerações de Nietzsche sobre o pensamento e a escrita de Heráclito, ou melhor, sobre seus próprios pensamentos e escrita.