segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Passage du silence

 
 
Carlos Hidalgo de Bacatetes declara:
...estou de acordo com Carlos Ortiz, que tanto os escritos como a linguagem de Carlos Castaneda pertencem ao gênero mitológico. O Nagual nos dizia: "os bruxos somos protagonistas de um mito vivente". Suas vidas são "histórias de poder", e em suas metáforas ou símbolos descobrimos ensinamentos profundos. Com respeito às narrativas de seus livros, don Juan dizia: "Não são histórias que se possam ler como se fossem contos; tens que repassá-las, logo pensá-las e volver a pensar". As mitologias são revelações provenientes de um nível superior de consciência.
Assim é que, de saída, não há que tomá-las literalmente, nem analisá-las com uma lógica racional.
Em seu livro "O Conhecimento Silencioso", Carlos declara que estas histórias são "manifestações do Espírito", e que as escreveu como "um trabalho de bruxaria". O único modo como podemos decifrar o seu sentido é através do "conhecimento silencioso". Em uma de suas palestras na Casa Amatlán, nos disse:
- Don Juan queria que eu escrevesse esses livros, porém, não como um ato de escritor, e sim como um "ato de bruxaria", através do ensoño. Me ordenou: "essa é a sua tarefa". Então, eu escrevo; ensonho o texto e devo fazer uma réplica exata do que ensonhei. Não posso corrigir nem fazer-lhe uma revisão. Meu processo é aquele de um feiticeiro, não uma ação cotidiana. Eu não sou escritor, não sou ninguém!

-
Precisamente, para que não nos apeguemos à letra, ou seja, aos conceitos, Carlos os mudava continuamente, impedindo que estabelecêssemos classificações. Isto nós podíamos apreciar em cada livro novo que saiu depois de "Relatos de Poder" (Porta para o Infinito). Para mim, o melhor exemplo eram as diversas palavras que ele utilizava para se referir ao transcendente: "o poder que rege os destinos humanos", "o nagual dos tempos", "o espírito", "o abstrato", "o intento", "o infinito", "o escuro mar da consciência", etc. É a experiência e o conhecimento silencioso o que nos revela o verdadeiro significado "daquilo" ("aquello", "it" em inglês, como também o denominava).
O que um homem de conhecimento busca é viver impecavelmente (não diluir sua energia com questões sociais e pessoais, se libertar da importância pessoal, da história pessoal e da autoimagem) e conquistar o silêncio interno (que é parar o mundo, pois todas as estruturas aprendidas ao longo do desenvolvimento da pessoa se desfazem, e ele vê tudo como um fluxo de energia). O silêncio interno nos permite "ver" a energia de todas as coisas, que não são coisas; nos permite ver o mundo todo formado por emanações, consciências, e sua verdade ontológica, o que realmente existe ali, em termos de energia.
- Um homem de conhecimento é aquele que seguiu fielmente as provações do aprendizado - disse ele. - Um homem que, sem se precipitar nem se deter, foi tão longe quanto possível para decifrar os segredos do poder pessoal.
O silêncio interno é causa e efeito do movimento do ponto de encaixe.
O homem é um casulo que encapsula zilhões de consciências, mas o homem só vê as emanações que aprendeu a ver, e que para ele são o "real". O real é uma descrição (ou descrição) que aprendemos a força, desde a infancia, com a coação socializante. Há uma parte de nosso ser que foca as emanações que estamos percebendo.
O silêncio interno é provocado e provoca o movimento do ponto de encaixe, que é a parte mais importante do trabalho dos guerreiros, pois é assim que eles se livram das limitações sociais e podem explorar novas realidades.
Os nove caminhos são uma boa condensação das técnicas que podemos usar para promover o movimento do ponto de aglutinação, ou melhor, ponto de encaixe.
Já escrevi isto numa nota aqui antes, mas, temendo que as pessoas não leiam as notas (que são sempre muito importantes, e, aqui, mais ainda), reproduzo ipsi litteris, verbatim, o que falei antes:
Em inglês "assemblage point", em espanhol "punto de encaje", nos próprios textos de Castaneda. No Brasil, desde o início, traduziu-se erradamente como "ponto de aglutinação". Ora, encaixe é uma coisa, aglutinação outra. No caso, trata-se do ponto de encaixe.
Domingo Delgado Solórzano apresenta um outro termo para o mesmo, em espanhol "punto de alineamiento", ponto de alinhamento (dois parágrafos depois utiliza "punto de encaje"):
As consciências luminosas são carbônicas e se dão em número de oito: turba, lignito, hulha, antracita, carboxilo, carbonilo, magnetita e actinotita. Têm uma configuração energética ovóide, dividida longitudinalmente, fazendo-as parecer vagens. No compartimento direito têm uma concavidade do tamanho de um punho, de cor glauca. É o ponto de alinhamento. As consciências o alinham e o encaixam nas emanações daquela fonte inconcebível de energia que chamam A Águia, para que, ao perceber, lhes permita a concretização da realidade cotidiana onde escolheram fixar a sua atenção.
 
O conhecido é a primeira atenção, o desconhecido são a segunda e terceira atenções, pois não conhecemos, mas podemos conhecer. A quinta e a quarta são o incognoscível. A segunda é meio conhecida, pois a visitamos todo dia (pelo menos, nos sonhos).
O incognoscível foge de qualquer possibilidade humana (mas pode ser acessado pelos naguais que vão além do humano): segundo Domingo e sua tradição, chama-se Aztlania, e é a origem de Cero (este é o artigo Um da sua complexa e pluridimensinal regra do nagual de cinco pontas). Leiamos o artigo Dezoito (em parte já o conhecemos, pela regra do nagual de quatro pontas, revelada por Carlos em O Presente da Águia):
A Águia se compõe de quarenta e oito grandes bandas de emanações. Uma grande banda emana consicências orgânicas. Sete grandes bandas emanam consciências inorgânicas. Quarenta grandes bandas emanam estruturas ou formas, veículos funcionais das consciências. A primeira atenção é a grande banda que emana consciências orgânicas, e é a primeira porque a Águia fixa nela sua atenção. A segunda atenção está formada pelas sete grandes bandas que emanam consciências inorgânicas. A Águia fixa com menos firmeza a sua atenção nelas. A terceira atenção são as quarenta grandes bandas de emanações estruturais. A Águia praticamente não fixa a sua atenção nelas, já que não abrigam consciências que a alimentem. Os percepetores (videntes) descobriram que passando a existir na terceira atenção podiam perpetuar suas consciências individuais eternamente, ou enquanto a Águia estiver ''lá'', já que não seriam desintegradas pela Águia no ato de morrer (o que ocorre com a consciencia não trabalhada). Ali elas ensonham, criando microuniversos onde existem, e perpetuam a consciência do Universo
 
Como estamos vendo, e vamos ver muito mais, há toda uma grande quantidade de desdobramentos da obra de Carlos Castaneda, na medida em que ele abriu a porta para o genuíno e profundo conhecimento do pan-americanismo oculto antes da chegada dos europeus, e instaurou um verdadeiro terremoto em toda a cultura ocidental. De um lado, o maior perigo, virar uma religião a mais, e se fundir de mil formas variadas com as que já existem, e isso está acontecendo, é claro. De outro lado, a parte do FOGO, a parte do leão e da águia, a alegria da vida, a retomada de algo que sempre foi nosso, mais do que herança americana (igualmente, das três, que são uma), nosso legado humano...
Assim, se fala em neotoltequidade:
A filosofia neotolteca é uma corrente de pensamento desenvolvida especialmente a partir da segunda metade do Século XX, e que se baseia na reinterpretação da mitologia mesoamericana, especialmente aquela relacionada com a cultura tolteca arqueológica. Para isto, os seguidores destas crenças, também chamadas de neochamanismo, se baseiam em certas fontes, cuja interpretação particular aponta para a ideia de que os mesoamericanos eram todos portadores de uma só cultura e de crenças que se chamaram Toltecáyotl. Também se apoiam nos escritos de Carlos Castaneda, um controvertido antropólogo peruano ou brasileiro (sua nacionalidade é incerta).

"Toltecatl, oficial de arte mecánica" "Toltecauia, o mestre em fazer algo". "Toltecáyotl, arte de viver".Padre Molina, Vocabulario Nahuatl-Castellano, 1571. /…/152


Ainda uma observação. Há duas vezes duas propostas, que podem ser trilhadas a partir de Castaneda.
Podemos considerar que é o marco de uma autovalorização do homem latino americano, e especialmente do mexicano. Que seus livros são a retomada de uma tradição de cultura, saber e poder, que realmente acontece, com feiticeiros, escritores, cientistas etc, geralmente mexicanos, valorizando o nagualismo e encontrando nele uma nova forma de viver e atuar. É a posição de Guillermo Marín.
Ou, como Merilyn Tunneshende, podemos pensar que o que Castaneda nos relata se integra em uma herança mística de toda a humanidade, que se dá em toda parte do mundo..O que também é verdadeiro.
A obra de Castaneda é tudo isso, no "caminho do meio". Ele não se compromete com uma visão "ideológica", uma "verdade" sobre o mundo. Mas nos oferece todas estas possibilidades, dentro da grandeza do presente que ele nos dá: a incessante busca da fresta entre os mundos.

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