quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Deleuze e o impulso alegórico

 


Deleuze e o Impulso Alegórico: A Arte como o 'Outro' da Filosofia

JORGE LUCIO DE CAMPOS

A virulência de Gilles Deleuze para com as formas canônicas da modernidade (não apenas a dele, mas a de todos os outros filhos da geração pós-68 francesa) se deve tanto à empreinte nietzschiana de seu pensamento, quanto a uma indole de reacionismo ‘regional’ — característica das últimas três décadas — que se convencionou (e ainda se insiste em) chamar de ‘pós-modernismo’.

Na esteira de convicções mais ácidas como as de Fredric Jameson, não é difícil reconhecer que um pensador como ele — que amiúde trabalha com os conceitos alheios, incorporando-os mais do que simplesmente citando-os (e atingindo, por vezes, o nível da própria indiscernibilidade) — revela-se um típico dissolutor das "velhas categorias de gênero e linguagem", um legítimo representante do que o intelectual norte-americano entende (pejorativamente) por ‘teoria contemporânea’, ou seja, "uma espécie de escritura (…) que é, ao mesmo tempo, todas e nenhuma dessas matérias (ciência política, sociologia, crítica literária, etc.) (tendo) esta nova espécie de linguagem sido associada, em geral, à França e à teoria à francesa e se difundido amplamente, marcando o fim da filosofia enquanto tal". Isso posto, entre as manifestações ‘puras’ da pós-modernidade também poderiam (e deveriam) ser incluídos pensadores como Michel Foucault, Jean-François Lyotard e Clément Rosset em razão de terem igualmente propugnado em seus textos tal discurso ‘indecidível’.

Graham Burchell, aludindo a um dos principais romances de Michel Tournier, fala-nos sobre seu audacioso projeto de conceber "o equivalente literário daquelas sublimes invenções metafísicas que são o cogito em Descartes, os três tipos de conhecimento em Spinoza, o esquematismo transcendental de Kant, a redução fenomenológica em Husserl". Mal comparando as ambições de Tournier com as de Deleuze, é possível visualizar, no que diz respeito ao último, um projeto-antípoda que rastrearia um sucedâneo filosófico para certos operadores de duplicidade tão comuns na arte contemporânea com destaque óbvio para a montagem e seus matizes poéticos de Picasso aos artistas pop.

O princípio-colagem — princípio do qual o texto deleuziano é amplamente devedor — manifestou-se nas principais correntes de vanguarda deste século, sobretudo, mediante a estratégia da citação. Originada no seio dos apontamentos cubistas (não se pode esquecer o implemento definitivo obtido nos anos 60 com a arte objetual), uma de suas mais originais e instigantes aplicações parece, sem dúvida, localizar-se nesta prática escritural que poucos implementam tão bem quanto Deleuze. O esquadrinhamento desse princípio pode, por outro lado, proporcionar uma diagnose bem interessante da sensibilidade pós-moderna (que, por seu lado, permitiria a sedimentação de uma visão mais sóbria das perplexidades simbólicas do tempo presente) caracteristicamente atravessada, entre outras coisas, por uma pulverização discursiva, pelo declínio definitivo da representação (com o aparente esfacelamento do megaeixo platonizante da cópia-modelo) e pela anomia lingüística.

Eivada de metatextualidade, a obra de arte pós-moderna demonstra ser, de fato, eminentemente alegórica e submetida, portanto, a uma estruturação de referências cruzadas. Após um ostracismo de quase dois séculos (quando quase foi considerada uma aberração estética), a alegoria voltou a ocupar o centro das atenções. Na opinião de Craig Owens, toda a arte (por que não dizer, a sensibilidade) contemporânea possuiria um incontestável tom alegórico que se manifesta, entre outras coisas, numa opressiva tendência a 'reativações' do passado e da história (bem visível, num primeiro momento, na prática arquitetônica). Em um estratégico ensaio, ele busca avaliar esta tendência emergente e determinar o alcance de seu impacto na teoria e na prática das artes visuais.

Se concordarmos com Owens em que "a alegoria se verifica cada vez que um texto tem o seu duplo num outro" e que "na estrutura alegórica, um texto é ‘lido através’ de outro, por muito fragmentária, intermitente ou caótica que possa ser sua relação: o paradigma da obra alegórica (sendo), pois, o palimpsesto", o que não pensar das ‘pilhagens’ conceituais deleuzianas?

Parece razoável afirmar que a obra deleuziana seria igualmente movida pelos dois impulsos fundamentais da alegoria referidos por Owens: "a convicção do afastamento do passado e o desejo de resgatá-lo para o presente". No que procura desmontar a história da filosofia, perspectivando-a (enunciando por detrás de pontos de vista 'insuspeitos', a presença fossilizada do platonismo), ela se encaixaria como uma luva neste momento vivido pelo Ocidente, desde meados do século passado: o da "irrupção quase obsessiva da memória".

Sob esta ótica, o projeto deleuziano de ‘desnaturalização’ do pensamento tornar-se-ia mais do que inteligível: "Agora a explicitação do ponto de vista permite denunciar a artificialidade do enunciado: o primado passa a pertencer à enunciação, ao ato que intervém, à natureza antinatural da linguagem, à vontade, ao desejo, à liberdade: momento de utopias e vanguardas; momento também da ressaca pós-moderna".

Para um pensador como Deleuze, urge deixar que os mecanismos do objeto falem por si mesmos. Não se deve interpretá-los, mas narrar suas equivalências ‘anatômicas’. O ato interpretativo pressuporia uma amarração de forças, a presença chancelar da intencionalidade e, obviamente, do jogo representacional com o apresamento dos predicados ‘selvagens’ do objeto pelo ramerrão fundacional do sujeito, não sendo nada difícil constatar a amplitude — na ‘carne’ da opus deleuziana — do gesto interventor (notável não apenas em seus livros dedicados ao ‘outro’, mas sobretudo nos trabalhos de produção pessoal). Digo amplitude porque tal fenômeno tem ocorrido não só no campo filosófico (neste âmbito, Deleuze pode ser tranqüilamente apontado como um pioneiro), mas, em geral (ou em especial) no âmbito dos códigos ora (auto)rotulados de ‘pós-modernos’.

A prática deleuziana da montagem indicia — juntamente com a apropriação e a exploração poética do acaso(esta última, especialmente visível nas conexões heterogêneas e na crítica da lógica da interpretação tão recorrentes em seu theatrum) — uma forte influência dadaísta,não se furtando Deleuze em expressar (nem sempre explicitamente), aqui e ali, sua admiração pelas chamadas ‘vanguardas históricas’ — no caso, não só pelo cubismo, como também pelo cubismo e a arte abstrata, triunvirato este que, em minha opinião, efetivamente, vitalizou sua poiésis.

Creio serem, de fato, muito estreitas as analogias19entre os procedimentos poéticos deleuzianos e as manifestações artísticas derivadas desse triunvirato. Em função disso, ao longo de suas leituras, Deleuze se comporta, via de regra, como bem mais do que um ‘simples’ filósofo — se contrapondo àqueles que, renitentemente, o tratam (ou julgam) apenas um filósofo (o que, no caso, tecnicamente, ele é, uma vez ter sempre privilegiado, em sua reflexão, os ‘enredos’ filosóficos) — que se serviria de saberes não-filosóficos para tão-somente ‘fazer’ filosofia.

Por outro lado, também quanto à inserção de seu pensamento no ideário contemporâneo, Deleuze pode ser considerado um nome de destaque na chamada pós-modernidade filosófica (ajeitado como foi, meio a contrapelo, pelos acadêmicos norte-americanos — juntamente com os últimos Foucault, Lyotard e Roland Barthes, Jacques Derrida, Jean Baudrillard, Michel Serres e Paul Virilio — no interior da maleta epistemológica ‘desconstrucionista’ ou ‘pós-estruturalista’ ou simplesmente engavetado no buraco sem fundo da ‘litero-filosofia’ como preferem alguns ‘habermazóides’ daqui e de lá).

Há, sem dúvida, vários traços comuns entre as propostas desses pensadores. A começar por seu ‘nietzschianismo de fundo’ (o que explicaria, a princípio, a simpatia pelo poético — no caso de Derrida, acirrada por seu élan heideggeriano — presente, em maior ou menor grau, em todos eles). No caso específico de Deleuze, a marca dadaísta (na verdade, mais ‘protodadá’ — se é que é possível falar assim — do que qualquer outra coisa) de seus procedimentos de criação, seria um indício de que os que foram assumidos pela arte do pós-guerra (especialmente nos anos 60 e 70, mas também — de outra forma, muito mais sutil, porque escamoteada pelo concurso da alegoria — nos anos 80 e 90) — ainda claramente filiada àquela matriz estética — de forma alguma, deixaram de ser modernos.

Em síntese, a presença ativa de tais procedimentos no pensamento deleuziano — assim como na arte objetual, na arte processual, na arte ambiental, arte conceitual e mesmo nos chamados ‘pós-conceitualismos’ — seriam uma evidência legítima de que — não somente no campo das artes e do pensamento, mas, quero crer, em todos os demais — de fato, não se justifica a enfadonha querela entre ‘antigos’ e ‘modernos’ — atualmente camuflada, pela mídia e pelo mercado (e por amplos setores da crítica), numa querela entre ‘modernos’ e ‘pós-modernos’.

A meu ver, há nos ares muito mais que uma novo agenciamento de sensibilidades. Entre os signos benignos dos tempos atuais (deixemos, por ora, de lado os malignos!), destaca-se o modo sutil pelo qual o pensamento tem lidado consigo mesmo. Creio serem Deleuze e Guattari — em O que é a filosofia? — os que que melhor tangenciaram o nervo da questão. Por outro lado, repito, digo ‘novo’ sem que, a rigor, haja muita novidade no processo. A usinagem da dirupção, amplamente codificada por Nietzsche — sem dúvida, seu grande semeador e difusor — já vinha sendo exercitada, ao longo (e a partir) da segunda metade do século XIX, por vários artistas ainda em pleno seio do chamado pós-romantismo.

Comportando-se como uma instigante ‘interface de saberes’, a usina conceitual deleuziana consegue captar vagidos filosóficos nos textos mais inesperados. Antes de fazê-lo, contudo, ‘extrai’, ‘racha’, ‘recolhe’ o que resulta (como os líquidos que minam) da violência do ato. Ato mítico de esvaziamento e preenchimento na simultaneidade. Trata-se de narrar uma história infantil ou um romance ou, mesmo, de conceber uma tela ou de montar uma seqüência visual apenas com conceitos. "Desviando suas linhas pré-existentes, enriquecendo-as com a invenção de novas imagens mitológicas, de novos modos de ver, sentir e pensar. Da filosofia ao romance e de novo à filosofia. Literatura, arte e ciência não requerem que a filosofia venha provê-las com uma fundação que, a princípio, elas não poderiam prover a si mesmas".

Importa inventar e criar — alucinadamente — numas época em que isso quase se tornou uma urgência orgânica. Importa fugir, a todo custo, do abraço letal da reprodutibilidade-enquanto-lei. "Filosofia e arte existem (e persistem) ao longo uma da outra como distintos meios de invenção".23As iniciativas de determinados artistas (como a de Magritte — já tão brilhantemente esquadrinhada por Foucault),24 de ‘pensar pela imagem’ — processo em que a obra funcionaria como um espaço visual de reflexão — Deleuze contrapõe seus ‘atos de pensamento sem imagem’ inteiramente engajados num amplo projeto de reversão. Assim também fez, entre outros, Marcel Duchamp, com seu deboche ready-made — ao mesmo tempo lente estética e ato messiânico de antinomeação, operador de uma leitura igualmente intersticial, erudita, parida no choque do entretexto.

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