quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Buda




Ananda Coomaraswamy
 
Buda afirma que ele "nada dissimula" que ele não estabelece uma distinção entre o interior e o exterior, que "sua mão não está fechada" (Digha-Nikaya(external link) II, 100). Mas a Lei Eterna e o Nirvana são "não-compostos e por este valor transcendente (param'attha) não existem palavras adequadas: (all'alta fantasia qui manco possa, Dante, Paraíso XXXIII, 742) ; isto será objeto da (saddha) do discípulo até que disto ele tenha experiência, até que o conhecimento venha substituir a Fé. "Aquele cujo espírito está abrasado com o desejo do Indizível (anakkliata), esse está liberto de todos os apegos e escravidão, nada contra a corrente (Dhammapada(external link) 218). Os Budas só fazem proclamar a Via" (Dhammapada(external link) 276). Se pode ter uma salvação pela (Suttanipata(external link) 1146), é porque "é a que conduz o melhor ao conhecimento" (Samyutta Nikaya(external link) IV, 298): crede ut intelligas. Quem diz diz autoridade; a autoridade de Buda (mahapadesa) que repousa sobre sua experiência imediata é aquela de suas palavras tais como ele as pronunciou; neste último caso, elas não somente foram corretamente compreendidas, mas ainda verificadas quanto à sua conformidade com os textos canônicos e a regra. Esta dependência da etapa inicial sobre o que ainda não foi "visto" não é exclusivamente budista e não exige uma particular credulidade. A matéria do ensinamento de Buda é sempre o que ele afirma ter visto e verificado pessoalmente: e isso, ele assegura a seus discípulos que eles também o poderão ver e verificar se eles o seguirem na sua viagem com Brahma. "Os Budas apenas indicam o Caminho; cabe a vós fatigar-se com a tarefa" (Dhammapada(external link) 276) ; o Fim permanece indizível (Dhammapada(external link) 218); ele não possui sinal (Samyutta Nikaya(external link) I, 188, Suttanipata(external link) 342); é uma gnose que não é comunicável (Anguttara-Nikaya(external link) III, 444) ; aqueles que só confiam no que pode ser dito estão ainda sob este jugo da morte (Samyutta Nikaya(external link) I, 11).
 
Quando se discute a questão da Fé, esquece-se demasiadamente que nosso conhecimento das "coisas", mesmo as que regem nossos atos mundanos, está na maior parte baseado na autoridade. Pode-se dizer que a maioria de nossas atividades diárias cessaria se deixássemos de acreditar nas palavras daqueles que viram o que ainda não vimos, mas que poderíamos ver fazendo o que eles fizeram, indo onde eles foram: do mesmo modo as atividades do neófito budista terminariam se ele não "acreditasse" nesta finalidade que ele ainda não atingiu. De fato, ele acredita que Buda lhe disse o que é verdadeiro, e age em consequência (Digha-Nikaya(external link) II, 93). Somente o Homem Perfeito é "sem fé" pois nele o conhecimento do Não-feito substituiu a Fé (Dhammapada(external link) 97) e esta não mais lhe é útil. Para o budista, o Dhamma, a Lex Aeterna, sinônimo da Verdade 1 (Samyutta Nikaya(external link) I, 169) é a autoridade suprema, o "Rei dos reis" (Anguttara-Nikaya(external link) I, 109; m, 149). É com esta última autoridade, fora do tempo e temporal ao mesmo tempo, transcendente e imanente, que Buda se identifica, identifica a Ipseidade na qual ele se refugiou: "Aquele que vê o Dhamma me vê, aquele que me vê, vê o Dhamma" (Samyutta Nikaya(external link) III, 120; it. qi; Milindapanha(external link) 73). Entre as escrituras budistas, uma das mais grandiosas é intitulada o Dhammapada(external link): "as Marcas da Lei"; é um itinerário, um guia para aqueles que "marcham na Via da Lei" (dhammacariyam caranti), a qual é também a "Via de Brahma", "a viagem com Brahma" (brahmacariyam), "a antiga estrada me seguiram os Todo-Despertos de outrora". Os termos budistas para dizer a "vereda" (magga) e a "busca" (gavesana) 2 da qual a Ipseidade é o objeto (Vinaya-Pitaka(external link) I, 23; Visuddhimagga(external link). 393), indicam implicitamente que é necessário seguir uma pista, mas marcas 3, Mas estas pistas terminam quando a margem do Grande Mar é atingida. O que era até então um discípulo (sekho) é daí por diante um perito (asekho); não está mais sob a direção de um preceptor (Gal. III, 25). A Via prescrita é a do aniquilamento do eu, da virtude, da contemplação; é necessário caminhar sozinho com Brahma; mas uma vez atingido o fim desta longa estrada quer seja neste mundo ou no outro, nada mais resta que o "mergulho" no Imortal, no Nirvana {amat'ogadham, nibban'ogadham), neste oceano insondável que é ao mesmo tempo a imagem do Nirvana, do Dhama e do próprio Buda (Majjhima-Nikaya(external link) I, 488, 494; Samyutta Nikaya(external link) IV, 179, 180; v, 47; Milindapanha 319, 346). É uma velha comparação, comum aos Upanixades e ao budismo: quando os rios atingem o mar, perdem nome e forma, só se falar do "mar".
 
"A gota de orvalho desliza para o mar resplandecente". Sim, mas a fórmula não é exclusivamente budista: nós a encontramos em Rumi (Nicholson, Diwan, XII, XV; Mathnawi, passim), em Dante (sua voluntate..:. è quel maré ai qual tutto si muove (Par. III, 84), em Mestre Eckhart (also sich wandelte der Tropfe in das Meer... "o mar da insondável natureza de Deus: mergulha dentro, é o afogamento"), em Angelus Silesius (wenn Du das Tröpflein weisz im grossen Meere nennen, denn weisz Du meine Seel'im grossen Gott erkennen, Christl. Wandersmann, II 25) e também na China, onde o Tao é o oceano ao qual tudo regressa (Tao-te King, XXXII). De todos os que o atingem pode-se somente dizer que sua vida é oculta, enigmática. Buda, que cada um o pode ver presente em carne e osso é desde agora "impossível de atingir" (anupalabhyamano); não é mais "descobrível" (ananu vejjo); um ser assim "mergulhado em si mesmo" não poderia mais ser relacionado a qualquer categoria (sankham na upeti (Suttanipata(external link), 1074)). Pois, "não há ninguém, que me vendo sob uma forma qualquer, possa me ver"; "nome e aspecto não me pertencem", "Somente aquele que vê a Lei Eterna, vê Buda, hoje mesmo tão efetivamente que quando o Mestre estava ainda revestido com sua personalidade (persona, máscara, disfarce) que, no momento de sua morte, ele fez estalar como uma cota.de malhas" (Anguttara-Nikaya(external link) IV. 312).
 
Acabamos de deixar perceber a identidade do Mar dantesco com o Mar budista, parecendo introduzir uma significação deísta nas doutrinas pretensamente ateias do budismo; bastar-nos-á fazer notar que não existe uma verdadeira distinção a estabelecer entre a imutável Vontade de Deus e a Lex Aeterna, sua Justiça de Sabedoria, esta natureza que é a sua Essência, contra a qual não se poderia agir sem negar a ele mesmo..
 
 



NOTAS






1. "Uma lei superior a nossos espíritos, chamada Verdade", Santo Agostinho, De Vera Relia. XXX, Cf. Santo Thomás de Aquino, Sum. Theol. II-I, 91-2.
2. Cf. a história de Gavesin, p. 69.
3. Como em Platão, ikneuon, passim; ou em Mestre Eckhart, a alma seguindo a pista de sua presa, o Crito.
4. No ritual védico, o Brahma é o mais sábio dos quatro oficiantes brâmanes, sua autoridade em todas as questões duvidosas; deduz-se que Brahma é o título mais respeitável que um brâmane possa dar a outro quando a ele se dirige.
5. Budh'atta buddho, Visuddhimagga(external link) 209; ef. Brhadaranyaka Upanixade, IV, 4, 13, pratibunddho atma. O "Eu desperto" será o "Eu que fui submetido à mutação" (bhavit'atta, passim), isto é, o "Eu não nascido (ajata'atta) que não envelhece nem morre" (Dhammmapada I, 228; cf. Bhagavad Gita II, 20).





Última modificação em 24 de Junho de 2010 17:52:58 UTC

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