sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Camus e o pensamento em imagens

 

Pensar já não é mais unificar, tornar familiar a aparência sob o rosto de um grande princípio. Pensar é reaprender a ver, a ser atento, é dirigir a própria consciência, é fazer de cada ideia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado.
"
Camus, O Mito de Sísifo
 
(...)
 
 
Pedro Gabriel de Pinho Araújo
Universidade de Brasília
 
O Pensamento em imagens
 
 Gostaria de definir então o que Camus chama de um "pensamento em imagens". Para tanto, devemos ressaltar que a abordagem também aqui desenvolvida é adequada à própria postura do autor que, mesmo em seus ensaios filosóficos (ele também é conhecido por seus romances), tem um modo de exposição onde seus conceitos não são definidos claramente em parte alguma, mas desenvolvem-se em uma narrativa construída, justamente, através de imagens. Como Camus, tomamos o termo imagem em um sentido figurado, porém simples de representação de uma determinada coisa. Ou seja, algo observável e que deve ser descrito a partir de um determinado ponto de vista - sem a pretensão à objetividade. Essa HUMILDADE do pensamento é consequência direta da pressuposição de que tal observação é sempre feita de um determinado ponto de vista, o locus (local) da consciência. Portanto, interessa-nos a experiência comum, ao mesmo tempo em que pessoal, de cada indivíduo frente a um determinado fenômeno. Nota-se que, apesar da evidente influência, não tratamos aqui de fenomenologia no sentido estrito da palavra, mas antes de um projeto interpretativo das experiências de fato centrado na experiência subjetiva.O conceito de imagem, no entanto, parece coincidir em larga medida com o conceito de fenômeno, com a diferença que o termo imagem dá um maior peso ao aspecto representativo (ficcional talvez) do objeto tratado. Nesse sentido, talvez até poderíamos definir um tal pensamento enquanto fenomenológico, desde que tomássemos a acepção de fenomenologia de Scheler que a define como uma atitude antes que como um método, talvez então poderíamos definir o pensamento em imagens propriamente como uma atitude fenomenológica. Na situação específica do discurso ou da escrita, como meio que aqui dispomos, essa atitude deve significar que, antes de definir, tentaremos descrever ou "enumerar" sem a pretensão de esgotar.
 
 
Nesse movimento "impressionista" e perpétuo da palavra, os significados então desprovidos de contornos bem definidos, tornando-se figuras fluidas e adaptáveis aos diversos contextos narrativos. Isso, antes de uma questão de estilo, é uma escolha que reflete uma desconfiança à facilidade das definições claras, bem delineadas. Essa desconfiança parte do pressuposto de que o mundo de fato é de uma constituição complexa - uma diversidade inesgotável, o que resulta em certa impotência do intelecto. Portanto, esse cuidado estilístico reflete o rigor de um pensamento que tenta capacitar sua forma em acordo com a altura da complexidade do objeto que ele pretende retratar. Essa diversidade é, como diz o próprio Camus, " O LUGAR DA ARTE " . Podemos ver então como e porque Camus escolhe dedicar-se à Literatura. As obras ficcionais: romances, crônicas, peças, contos e outros são obras ricas em descrições de situações, cenários, personagens, sentimentos. Além disso, podemos até assumir certo grau de pretensão verdade nesses relatos, mas a própria estrutura do relato ficcional é desde o princípio aberta, passível de uma interpretação, mesmo tendo em vista que o " romance tem sua lógica, seus raciocínios, sua intuição e seus postulados ". Nesse sentido, um ponto importante que gostaria de colocar em evidência é que Camus se aproveitou ao máximo desse aspecto não objetivo da arte para usar suas narrativas ficcionais como geradoras de tensão em seu pensamento.Assim vemos ser falsa a tese geralmente aceita de que seus ensaios filosóficos seriam explicações de uma mensagem que os romances pretenderiam passar. Esse projeto, teorizado e praticado por Sartre , é positivamente rejeitado por Camus. No entanto, como figura de grande influência no circulo literário da época, Sartre acaba por tornar-se uma referência na crítica literária, sobretudo com a ideia de " art engagé "(arte politicamente engajada) .
Podemos observar, no entanto, que esse referencial não é valido na avaliação da obra camusiana, não apenas pela sua rejeição da concepção de engajamento literário sartreano, mas também porque Camus, em forte contraste com Sartre, tem nas obras um momento não apenas de afirmação, mas de crítica de suas ideias. A concepção que Camus faz de sua obra literária não deixa outra opção: ela deve operar em um movimento que afirma ao mesmo tempo em que recusa. Como afirma Lissa Licoln:
"Camus, longe de defender esse ou aquele sistema de valor, utiliza o material literário para colocar esses sistemas em tensão."
Um leitor desavisado poderia estranhar tal crítica de um autor de romances de teor indiscutivelmente filosófico. Afinal, um autor que explicitamente pretende "FAZER VIVER MITOS", deve, ao mesmo tempo, estar falando algo sobre o mundo de fato. A questão, mais uma vez é a medida e desmedida. Mais uma vez, aqui o mundo é tido como inesgotável e um pensamento que não se permite a saltos indutivos deve ao mesmo tempo em que admite sua incapacidade de satisfazer-se pelo real, não admitir nada além desse real. Dessa forma, o conhecimento torna-se algo sempre por vir, uma batalha sem fim e sem esperança de vitória, como a de Sísifo - absurda. Assim, esse pensamento em imagens nunca deve estar satisfeito e dessa forma é incapaz de produzir obras que tem por objetivo satisfazer. Nesse sentido, a tese do romance pode e talvez deva estar lá. A crítica que Camus faz aqui está em pleno acordo com a afirmação de Blanchot quando ele diz:
"qualquer tese que triunfe num romance deixa imediatamente de ser verdadeira".
Esse triunfo é justamente a unificação do sentido do romance em uma tese. Mas, em termos camusianos o Absurdo está lá, inabalado pelo romance triunfante e por isso prova tanto a tese quanto o romance falsos. O mundo não é unidade, portanto uma ficção unificada por uma tese é desenlaçada de suas origens carnais, se afastando da vida. Ao contrário,um conceito também desenvolvido por Blanchot e que se aproxima mais da ideia que Camus faz da sua própria obra é o de "literatura da experiência". Essa ideia é justamentea de uma literatura que não renuncia esses aspectos carnais e que não por acaso Blanchot usa Gide como exemplo - uma grande influência para Camus. O que seria "a literatura que zomba das obras e está pronta para se arruinar para atingir o inacessível" senão a "criação sem amanhã" exposta no Mito de Sísifo ?
 
 
 
 

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