segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A Linguagem dos Pássaros" (Mantiq-at-Tayr)


 

 
- Revista dos Alunos do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião - UFJF
"A Linguagem dos Pássaros" (Mantiq-at-Tayr) e a mística do

Islã
"The Conference of Birds" (Mantiq-at-Tayr) and the mystical of



Islam
Dilaci S. Faria1



Introdução


"Deus está mais próximo de nós do que nossa veia jugular"

(Corão, 50:16)


"A Linguagem dos Pássaros", Mantiq-at-Tayr ou "A Conferência dos

Pássaros" grande poema místico escrito na Pérsia do século XII por Faridud-Din Attar,

introduzido na Europa em 1863 pela tradução francesa de Garcin De Tassy, é uma

narrativa alegórica que apresenta a essência do pensamento sufi.

Trata-se de uma das maiores e mais importantes obras da literatura muçulmana

e também da literatura mundial, acolhida por importantes escritores europeus como

Cervantes, Chaucer, Milton, Dante, e também pelo argentino Jorge Luis Borges e pelo

mexicano Octavio Paz.

O remoto rei dos pássaros, o Simurg, deixa cair no centro da China uma pluma

esplêndida. Cansados de sua anarquia, eles vão em busca de seu rei. Sabem que sua

fortaleza está no Káf, a montanha circular que rodeia a Terra. Empreendem a quase

infinita aventura; superam sete vales, ou mares; o nome do penúltimo é Vertigem; o

último se chama Aniquilação. Muitos peregrinos desertam; outros perecem. Trinta,

purificados pelos trabalhos, chegam à montanha do Simurg. Enfim o contemplam

(Borges, s/d.).

"Attar" é tido como um dos três maiores
poetas místicos persas de todos os tempos, juntamente com Sanai e Djalal Ud-Din

Rumi. Além do seu "Diwan" (coletânea de versados religiosos) foi autor de diversos

"Masnavi" (esquema de dísticos com rima, adotados em poemas épicos, alegóricos ou

místicos) e de uma hagiografia, ou Memorial dos Santos, a "Tadhkriatal-Awita".

A narrativa descreve de maneira metafórica as etapas percorridas pelos

pássaros-homens para atingir um estado desconhecido da consciência humana, e por

isso colocado além da barreira de palavras e da mente. A esse estado ele nomeia de

Simurgh, que pode ser encontrado quando se pratica determinadas ações que levam o

homem ao despojamento de ilusões, dos falsos e mundanos ideais.



A proximidade de Allah com o homem é um marco na crença do Islã, palavra

que significa "entrega", "submissão" a Deus. Na citação inicial: "Deus está mais

próximo de nós do que nossa veia jugular" pode-se perceber a intensidade dessa

percepção e sentimento.




O Corão não é um tratado teológico, mas um livro sagrado que propõe

preceitos marcados pelo aspecto prático e ético. A comunidade muçulmana é mais

preocupada com a moral do que com as questões teológicas.



Os professantes da religião de Mohammad (Maomé) da península Ibérica

fizeram especulações em face de outra perspectiva de percepção do sagrado, fato que

fascinou os intelectuais e artistas muçulmanos incitando-os para a produção de um tipo

de expressão de sentimento religioso que os tornaram conhecidos mundialmente.

Nasceu um grupo que se tornou interprete dos ensinamentos corânicos, das palavras de

seu líder, com uma conotação diversa, ligada ao sentimento, à interiorização reflexiva

(esotérico) diferente do conhecido até então ligado à ortodoxia do texto sagrado

(exotérico). A proposta desses devotos foi o que passou a ser conhecido como

pensamento sufi.



Em razão da riqueza dos ensinamentos e da extensão do texto de Attar o que

me foi possível apresentar neste simples artigo é uma pálida descrição e singelos

comentários sobre os ensinamentos que o autor, de forma tão rica, oferece àqueles que

se interessam em tomar conhecimento da proposta que "A Linguagem dos Pássaros"

oferece. Com este objetivo agrupei os assuntos em cinco tópicos de modo a possibilitar

ao leitor uma rápida percepção do sufismo e da obra.





O Sufismo


O termo sufi procede de "suf", lã, ou hábito de lã usado pelos religiosos

ascetas. Os praticantes do sufismo, os sufis, entendem que é impossível chegar a Deus

somente pela inteligência, pela razão, pela vontade. Para o sufismo, a intuição é mais

importante que a racionalidade, e dogma é sempre a racionalização do que se teme ou se

deseja.



O sufismo não adota nada como sagrado, nem dogmas, nem símbolos, nem

ícones, nem templos, e é absolutamente flexível, adequando-se ao momento, ao

presente. O ensinamento sufi concentra-se na essência, o que importa, sempre, é a

interioridade.



Esse importantíssimo ramo da tradição esotérica foi mantido notadamente no

médio Oriente. A palavra esotérica possui precisamente a acepção do termo grego

"esoterikós", interior, e está relacionada à busca espiritual do homem, à procura do

autoconhecimento como caminho para atingir a verdade suprema.



Uma das enunciações do sufismo se ancora na shari'ah, religião positiva e a na

hagiqah, a ideia. A religião positiva é o aspecto exotérico, é o símbolo. A ideia, por sua

vez, é o aspecto esotérico de religião positiva, é o simbolizado. "O exotérico está em

perpétua flutuação como as ondas do mar, criando formas efêmeras de acordo com as

épocas e nações do mundo. Já o esotérico é uma energia divina, o fundo imutável dos

oceanos, que não está submetido à transformação, ao devir. Por tanto, a religião não

pode assumir um caráter dogmático. Para se chegar até ela são necessários iniciadores: a

"tariqa", ou o método para integrar os dois elementos componentes, a religião

exteriorizada e o Espírito essencial da espiritualidade divina.



Ali Shahem em "Princípios Gerais do Sufismo" reafirma que a essência do

conhecimento iniciático, no sufismo como em outras doutrinas esotéricas, tem como

denominador comum "a busca da verdade através de uma combinação de teoria e

prática", reforçando a ideia da necessidade de o buscador sufi ter um mestre, um guia

espiritual. O autor coloca ainda que atualmente existem quatro estágios pelos quais o

buscador sufi deve passar em seu caminho para a perfeição e união com a Essência

Divina. O primeiro, "Nasut", ou "Humanidade", tem como principal característica o fiel

cumprimento pelo neófito das "leis e cerimônias islâmicas". O segundo, o método,

"Tariqa", ou "Capacidade", dá ao buscador a condição de iniciado; ele deixa de ser um

neófito no caminho espiritual e se torna um sufi. O terceiro, "Araff" indica que os olhos

do buscador foram abertos e ele está de posse de conhecimento sobrenatural e interior.

E o estágio final, "Haqiqah", é o da "Verdade/Realidade", perfeita, plena e suprema

união da alma com a Divindade.



O mestre sufi deve ser entendido como alguém que já trilhou o caminho do

autoconhecimento e chegou a um nível de consciência maior, e por isso é um ser mais

integral. As práticas do sufismo podem se desenvolver para além do ensinamento oral,

ou seja, por meio de atividades especificas que passam pelos exercícios respiratórios e meditação. Atividades que apenas um mestre, empregando técnicas e métodos próprios

têm condições de prescrever ao discípulo.



Além disso, como afirma Faustino Teixeira, na palestra "As partes e o todo: o

apelo da mística Islã" em palestra na "X Semana de Filosofia da UFSJ", o caminho da

mística sufi é a lógica do coração e citou Muhammad Katami, ex- presidente do Irã,

para a compreensão das peculiaridades do pensamento islâmico, com vivos reflexos na

tradição sufi, que está aberta para a complexidade do real:


nossos grandes pensadores, embora cientes da indispensabilidade da razão, sabiam

que ela, sozinha, não poderia desvelar toda a realidade. Nossas tradições religiosas

pregam que, no final das contas é a fé no coração, e não no intelecto, que apreende a

realidade em sua totalidade (Kahatami, 2006, p. 61).


A maneira pela qual a tradição sufi acessou o real divino foi através do coração

que é como um espelho que reflete a luz da divina Realidade. No dizer de Henri Corban

para o sufismo o coração (qalb) é tido como "órgão sutil da percepção mística", capaz

de projetar a cada instante a presença diversificada das teofanias (Corban, 2001, p. 35).

O sufismo afirma o mistério da unidade da existência, mantendo viva a

consciência da relatividade das coisas, o que não o identifica com o panteísmo, como

apontou Frithjof Schuon, pois o panteísmo propõe uma concepção que pressupõe uma

continuidade entre o Infinito e o finito, entre o Princípio Ontológico e a ordem

manifesta. O sufismo não concede às coisas, em hipótese alguma, uma atribuição de

autonomia com respeito ao Ser ou ao Real (Schuon, 1991, p. 51-52).



A invocação "Deus é o Maior" (Allahu Akbar), expressão tão repetida pelos

muçulmanos sufis é prova dessa percepção, que é um viés de grandeza encontrado em

toda religião monoteísta. Os ensinamentos corânicos exaltam a grandeza de Deus e Sua

proximidade com o ser humano. A plenitude de Deus é sempre realçada no texto

sagrado muçulmano, como é possível observar na sura 112, com apenas quatro

versículos, que retrata a crença na grandiosidade e plenitude de Deus.


Dize: Ele é Allah, Único.

Allah é o Solicitado.

Não gerou e não foi gerado.

E não há ninguém igual a Ele.

(Corão, 50:16)


A proposta de Attar


"A Linguagem dos Pássaros" é um colóquio de aves através do qual o autor


conta a história de um bando de pássaros que resolve empreender uma viagem em busca

de um chefe, de um deus, de um sentido para a vida. Esse grupo se reúne em assembleia

e ouve falar no Simurg, pássaro formidável, que foi eleito para ser seu Rei.

Attar, com alto caráter simbólico, em fala ritmada, conduz o leitor a uma

peregrinação pelo cotidiano da Pérsia do século XII, através de uma comitiva que

conseguiu reunir, "todos os pássaros do mundo" para juntos se aproximarem de Simurg,

o rei dos pássaros. Para fazerem esse percurso foi eleita como guia, como mensageiro

divino, a poupa (folhaonline, 29/05/2008), ave típica da região. "A Linguagem dos

Pássaros" apresenta de forma inteligente e instigadora, entremeadas com a narrativa

principal, parábolas, histórias da tradição muçulmana como de Layla e Majnum (casal

persa de namorados), das mariposas, de príncipes e mendigos, de dervixes, de sheihks e

profetas. Essas histórias cadenciam o ritmo das aventuras dos pássaros, conduzidos pela

poupa, de modo a dar uma pausa ao leitor para assimilar os ensinamentos desses

viajantes.



A busca da compreensão do mistério da presença de Deus, que é sempre maior

do que qualquer ser humano possa imaginar, é uma das características de todo texto que

procura levar os iniciados a um entendimento verdadeiro de Sua grandeza por meio do

encontro com Simurg, rei dos pássaros, pois os homens, de modo geral, têm dificuldade

em entender esse mistério.



A simples leitura do livro, porém, não faz de ninguém um sufi, nem mesmo um

iniciado no sufismo. A exemplo de outras escolas esotéricas, o sufismo exige do

buscador a presença de um mestre vivo, de um guia como a poupa foi para os pássaros.

Os estágios pelos quais o buscador passa na sua viagem aparecem de maneira alegórica

na narrativa de Attar e o resultado final é conseguido quando os pássaros viajantes

encontram Deus e se encontram em Deus.



No dizer de Leo Gilson Ribeiro a filosofia mística arábico-persa que sustenta

ser o espírito humano uma emanação do divino, no qual se esforça para reintegrar-se, "A

Linguagem dos Pássaros", de Faridud-Din Attar, é um
relato cheio de magia e encanto que nos revela o deslumbramento de uma das

supremas meditações místicas mundiais: a linguagem desses pássaros é uma

iniciação ao caminho ético e divino, uma forma de Tao persa, que indica o

comportamento moral correto ao seguidor de uma das mais belas e acessíveis

ramificações do Islamismo (Ribeiro, s/d.).





O texto, tantas vezes comovente, dirige-se ao intelecto, à compreensão e

interpretação das mais altas verdades que a alma humana possa alcançar. É o coração o

alvo dessas palavras revestidas de nobreza, desapego a todo e qualquer materialismo,

regido somente pelo amor ao próximo e o desejo ardente, radical, de se atingir a

Origem, Deus, através dos percalços dolorosos da vida até se chegar à unio mystica com

a Divindade.



A história contada de maneira metafórica incita o raciocínio dos leitores com

alusões que propiciam um entendimento sutil. Os pássaros podem ser homens comuns

ou, em outra exegese, os próprios adeptos do sufismo em busca de Verdade eterna e

imutável.



No livro, a ave mais nobre, a poupa, conhecida também como mensageira do

Rei Salomão, conduz os pássaros rumo a Fênix, Deus eternamente ressurgido e

resplandecente. Só alguns pássaros chegam até Simurgh. (trinta pássaros).

O pássaro Simurg seria a metáfora do mestre perfeito e a manifestação de Deus

como é também o eu interior, o que se encontra na palavra de Ali (o quarto califa e

primeiro ímã xiita), quando diz: "Aquele que chega a se conhecer, ou a adquirir o

conhecimento do seu eu, conhecerá seu Deus".



A Invocação


Nos moldes do texto sagrado do Islã, Attar abre a narrativa com uma Invocação

de louvor ao Santo Criador da alma com alusão à criação do mundo descrita no Corão,

2:111, semelhante a Gênesis, I, 3; e aos Salmos, XXXII, 9. Prossegue em seguida:
Deus produziu o vento, a terra, o fogo, o sangue; por estas coisas Ele anuncia Seu

segredo. Ele colheu a terra a amassou-a com a água; depois de quarenta manhãs,

colocou nela a alma, e esta deu vida ao corpo. Deus deu-lhe inteligência para que ela

tivesse o discernimento das coisas. Quando viu que a inteligência estava de posse do

discernimento, deu-lhe a ciência, para que pudesse apreciar tudo o que lhe havia sido

conferido. Quando o homem tomou posse de suas faculdades, confessou sua

impotência e submergiu no espanto; então seu corpo entregou-se aos atos exteriores.

Amigos ou inimigos, a sabedoria impõe a todos inclinar a cabeça sob o jugo de

Deus; e, coisa admirável! Ele vela por todos nós (Attar, 1991, p 3).





"Deus é tudo, e as coisas têm somente um valor nominal. Sabe que o mundo

visível e o mundo invisível são Ele mesmo. Não há nada além dele, e o que é, é

Ele"(Attar,1991, p. 4).



Mais a frente, o escritor refere-se ao mistério da criação do ser humano ao

dizer:


Quando a alma uniu-se ao corpo, tornou-se a parte e o todo: nunca se fez um talismã

mais maravilhoso.





Formou-se um amálgama de terra vil e espírito puro. Por esta mescla o homem

tornou-se o mais admirável dos mistérios. Ninguém, no entanto teve conhecimento

desse segredo, e de fato, não é assunto para qualquer indigente. Qualquer coisa que

queiras dizer, o melhor é guardar silêncio, pois ninguém poderia lançar um suspiro

sobre esse tema (Attar,1991, p. 5).




Attar finaliza sua invocação exaltando o sofrimento pelo qual o Líder dos

Profetas passou por causa de injúrias e maldades, sem se esquecer de antes mencionar o

sofrimento de Cristo ao pé da cruz, de João Batista, com sua cabeça degolada, de

Zacarias, morto em silêncio. Não deixou de relembrar as lamentações de Adão, de Noé

que sofreu mil anos nas mãos dos ímpios, de Abraão, o desafortunado Ismael,

sacrificado no amor divino, de Jacó que ficou cego de tanto chorar por seu filho, de

José, na escravidão, no poço e na prisão. Mencionou ainda na sua invocação Jó, estirado

na terra com vermes e lobos; de Jonas que se perdeu no caminho e foi parar no ventre de

um peixe, a baleia; de Moisés que ao nascer foi colocado numa cesta e o faraó exaltouo;

referiu-se ainda a David que se ocupava fazendo armaduras e a Salomão de quem

apoderou-se um djim, espírito.



Em seguida vem a primeira Parábola. Depois o Elogio a Mohammad, o Senhor

dos Enviados. Narra uma História Alegórica e Elogios a Abu Beker, o primeiro amigo

do Profeta e pai de sua última esposa, Aisha, fala sobre Omar o segundo Califa, sobre

Osman, o terceiro também sobre Ali, o quarto Califa sucessor de Mohammad, dentre

outros temas, encerrando essa introdução com a "Oração de Mohammad".

A Invocação feita por Attar mostra um místico profundamente ligado e

respeitoso aos ensinamentos corânicos. Com essa característica de comprometimento e

atenção com e aos ensinamentos do Corão chega-se ao primeiro capítulo que inaugura a

narrativa da grande viagem.



A Busca de Deus


O tema divide-se em sete partes: a procura, a paixão, o conhecimento, o

desinteresse perfeito, a unidade em Deus, a estupefação e a anulação de si mesmo no

Bem-Amado. É desse modo que começa a busca do neófito que supera cada dificuldade

que surge nesse caminho, até alcançar e desvelar sua miragem pessoal permitindo assim

contemplar uma realidade absoluta desprovida de fantasias. A necessidade do

simbolismo é evidente, uma vez que, a ignorância da meta final faz com que para

alcançar essa meta a maneira seja pela eliminação. Sabendo o que "não é", a mente

descobrirá finalmente "o que é".



A narrativa começa com o interesse que um grupo de pássaros (mais de mil)

sentiu de procurar e encontrar o seu Rei. Como eles não podiam fazer isso sem um guia,

reuniram-se em assembleia e pediram ajuda à sábia poupa para efetuarem a busca.

A poupa lhes disse que o rei que estavam procurando, Simurg vivia escondido na

montanha de Kaf. Explica a eles que a viagem para chegar até lá era muito difícil e

perigosa. Os pássaros imploram à poupa que os guiassem e, para isso, elegem-na como

a condutora.





Ela aceita a missão e começa a ensinar a cada pássaro de acordo com seu nível

de conhecimento e temperamento. Diz a eles que para alcançar o alto da montanha, Kaf,

necessitariam atravessar sete vales sendo os últimos dois desertos. Só quando

conseguissem passar o segundo deserto entrariam no palácio do rei. Os de vontade

débil, temerosos da viagem, começaram a dar desculpas (Attar,1991, p. 49).



O papagaio, egocêntrico e egoísta, disse que no lugar de ir em busca do rei, iria

procurar a fonte da vida: "a fonte de Hidr basta-me"; o pavão real, a ave legendária do

paraíso, exclamou que sonhava que voltaria ao céu e que iria esperar pacientemente esse

dia; a pata lamentou-se porque sua vida dependia de estar próxima da água e morreria

caso se separasse dela; a garça apresentou uma desculpa similar, não poderia viajar para

longe do mar, porque seu amor pela água era tão grande que, embora permanecesse

sentada durante anos à sua margem, sem beber uma só gota de sua água, ficaria a

contemplá-lo. A cada desculpa a poupa percebia quão frágil era o ânimo do fraco

buscador.





A coruja, ou o mocho, declarou que preferia ficar e buscar as ruínas com a

esperança de encontrar nelas, algum dia, um tesouro; o rouxinol disse que não iria

viajar, porque era enamorado da rosa e este amor tornara-se suficiente para ele, ninguém

conhecia os seus segredos, unicamente a rosa. Havia se esquecido de si mesmo e só

pensava na rosa. "Alcançar a Simurg está acima de mim" (Attar, 1991, p. 49).

A poupa, entendendo o sentimento de insegurança dos pássaros, exortou-os

com a narrativa daqueles que tinham feito a perigosa viagem. Convencidos com suas

histórias os pássaros decidem então ir até o primeiro vale. Entretanto, logo começam a

ter problemas, e se dão conta de que o caminho seria mais difícil do que haviam

imaginado.





Recomeçam as justificativas para desistência da jornada. Um afirma que a

poupa não é suficientemente sábia para conduzi-los. Outro se queixa que Satanás lhe

tem possuído e lhe está pondo as coisas difíceis. Há ainda o que expressa seu desejo de

ter dinheiro e a comodidade de uma vida de luxo. A poupa decide então descrever- lhes

os sete vales e desertos da viagem.







O primeiro vale que se apresenta é o da busca (talab); o que vem depois é o do

amor (ischc), o qual não tem limites; o terceiro é o do conhecimento (ma´rifat); o quarto

é da independência ou da autossuficiência (istgna); o quinto é o da pura unidade

(tauhid); o sexto é o da terrível estupefação (hairat); finalmente o sétimo é o da pobreza

(fakr) e do aniquilamento (fana), vale do qual não se pode avançar






Em seguida faz a descrição dos vales e dos desertos. O Vale da Busca onde se

procura a Verdade com inquietude, com constância, para obter um significado maior do

propósito da vida. Só um ser realmente interessado e com dedicação pode atravessar a

salvo o primeiro vale e ir ao segundo vale, o do Amor






O Vale do Amor, onde há o desejo ilimitado de ver o Rei Amado. Um fogo

abrasador começa a crescer no coração e se faz devastador. O lugar é mais perigoso que

o primeiro vale, porque há obstáculos no caminho para colocar o amor em prova.

Entretanto, esse mesmo amor impulsiona o buscador a sair desse vale e ir até uma terra

mais alta: o terceiro vale, o do Conhecimento.




Quando se entra nessa terra, no Vale do Conhecimento o coração se ilumina

com a verdade. É nesse Vale que se adquire o conhecimento interior do Amado. Do

Vale do Conhecimento o viajante continua a viagem ao Vale do Desapego, onde perde

seus desejos de possessões mundanas. Não há ataduras com o mundo material para o

viajante que atravessa esse vale. Cada novo lugar em que ele consegue chegar é mais

perigoso que o anterior e deve ser explorado passo a passo, uma vez que cada um

contém suas próprias provas e dificuldades. Assim, toda chegada a uma terra diferente é

uma experiência nova.





O quinto vale é o Vale da Unidade. O viajante experimenta nele que todos os

seres são unos em essência, que toda variedade de ideias, experiências e criaturas da

vida tem realmente e apenas uma só fonte, Deus. Depois o viajante chega ao Deserto do

Medo. Então se esquece da existência de si mesmo e de todos os demais. Vê a luz, não

com os olhos da mente, sim com os olhos do coração. A porta do divino tesouro, o

segredo dos segredos, se abre. Nessa terra o intelecto já não funciona. Aqui se pergunta

ao viajante quem é ele e a resposta é: "não sei nada". Finalmente chega- se ao Deserto

do Aniquilamento e da Morte. Ai chegando o viajante se percebe como uma gota que se

funde no oceano da unidade com o Amado.





Depois de ouvirem a descrição da poupa sobre o que lhes esperava os pássaros

se animam tanto que imediatamente continuam sua viagem.





O Encontro


No caminho, no entanto, alguns sucumbem pelo calor, outros nas violentas

ondas do mar. Outros simplesmente se cansam e desistem de continuar; um grupo é

caçado por animais selvagens e outros se detêm tanto pelo atrativo das terras que

atravessaram que ficam para trás. Só trinta alcançam a montanha de Kaf, onde

encontrariam Simurg, seu Rei. Estavam cansados, depenados, famintos, com o coração

sofrido, mas haviam finalmente conseguido chegar ao destino idealizado.



No portal de entrada do reino, o arauto real os aguarda. "Viemos reconhecer

Simurgh, o nosso Rei," dizem os pássaros. "Mercê do amor e do desejo dele perdemos a

razão e a paz de espírito... sofremos os maiores desconfortos e passamos as maiores

necessidades" (Attar, 1991, p. 228) falam eles ao se aproximarem. No entanto, são

tratados com desprezo pelo guardião, que impede a entrada desses sofredores.

"Não podemos acreditar que o rei faça pouco de nós depois de todos os

sofrimentos por que passamos. Ele só poderá contemplar-nos com os olhos da

benevolência!" (Attar,1991, p. 229).



Os pássaros, que passaram o pior, não desistem e com suas lamentações

procuram convencer o arauto que lhes negou a entrada. Só traziam consigo reclamações

e relato dos infortúnios. O recepcionista real lhes explica que não poderiam chegar ao

Amado dessa maneira, com lamúrias e queixas. Como se aproximar do Amado só

falando com queixumes e reclamações da viagem? Precisavam chegar a Ele felizes por

terem vencido todos os obstáculos e de poderem finalmente conhecê-Lo.





Eles não se permitiram ficar molestados com a dureza da negativa. "Como se

salvará da chama a mariposa que deseja unir-se a ela?" Reagiram e se comparam à

mariposa que se entregara por amor à chama e fora queimada por ela. Preferiam serem

aniquilados no fogo do amor como a mariposa do que viver sem experimentarem a

ventura de conhecer o seu Rei. Tendo-os colocado à prova e finalmente se convencido

do amor e da convicção dos trinta pássaros o arauto real abriu a porta e os levou ao

salão nobre.



As cem cortinas foram descerradas e o mundo se apresentou sem véus para

esses pássaros. E o que aconteceu? Cada um deles recebeu um escrito que, por

alegorias, descrevia o estado desolado em que se encontravam. E nada mais.

E Simurg, o rei dos Pássaros que tanto queriam encontrar, onde estaria? Eles

estavam sozinhos na sala real. O que seria aquilo? Estavam sem entender. Só então

descobriram o que procuravam na viagem. Eles só se viam a si mesmos, pois naquele

local não havia ninguém. E o Rei Simurg? Perplexos, tudo o que viram eram a eles

próprios, isto é os trinta pássaros, si-murg em persa.


O sol da proximidade dardejou seus raios sobre eles, e suas almas tornaram-se

resplandecentes, então no reflexo de seu rosto, os trinta pássaros (si murg)

mundanos contemplaram a face do Simurg espiritual. Eles apressaram-se a olhar o

Simurg que encontraram e asseguraram-se de que não era outro que si-murg (trinta

pássaros). Todos estavam estupefados; ignoravam se continuavam sendo eles

mesmos ou se haviam se convertido no Simurg (Attar,1991, p. 232).


Em seguida entregaram-se à meditação em busca da revelação do mistério da

unidade e da pluralidade dos seres. Finalmente compreendem que, olhando-se a si

mesmos, tinham encontrado o Rei, e que em busca do Rei, tinham encontrado a si

mesmos. Attar procura por meio de seu texto fazer com que o buscador em nenhum

momento deixe de sonhar com a busca da Verdade.




Somos vizinhos um do outro;

Tu és como o Sol, e eu como a sombra.

Ó Tu que és generoso com os indigentes!

Por que não prestarás atenção a Teus vizinhos?

Meu coração está triste, minha alma aflita.

O ardor me leva a Ti faz correr as minhas lágrimas

Como a água da nuvem.

Sinto não poder estar unido a Ti;

No entanto não Ti busco menos.

Ah! sê meu guia, pois perdi-me de meu caminho!

Dá-me a felicidade, ainda que venha a

Pedir-Te intempestivamente.

Aquele que teve a fortuna de entrar em Tua vida

Desapegou-se de si mesmo e perdeu-se em Ti.

Não estou sem esperanças, mas estou impaciente.

Espero que de cem mil tomarás um (Attar,1991, p. 10).




Após passarem por todas as atribulações de anos e anos de viagem, os pássaros

mortais entregaram-se, por si próprios, ao aniquilamento total. O que se segue após o

aniquilamento não foi objeto de reflexão de Attar. O mistério continua, mas enquanto os

homens estiverem preocupados com as coisas do mundo, não se porão no caminho à

procura do seu Deus.



"Enquanto tua alma não estiver a serviço do Rei eterno, como Ele te aceitará

aqui? Enquanto não encontrares o rebaixamento do nada não verás jamais a elevação da

imortalidade. Primeiro és lançado no caminho espiritual com envilecimento, depois és

elevado com honra" (Attar,1991, p. 234).

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