domingo, 29 de dezembro de 2013

A Aproximação a Almotásim

 


Tradução de Carlos Nejar
 
Philip Guedalla escreve que o romance The approach to Al-Mu'tasim, do advogado Mir Bahadur Ali, de Bombaim, "é uma combinação um tanto incômoda (a rather uncomfortable combination) desses poemas alegóricos do Islã que raras vezes deixam de interessar seu tradutor, e daqueles romances policiais que inevitavelmente superam John H. Watson e aperfeiçoam o horror da vida humana nas mais irrepreensíveis pensões de Brighton". Antes, o Sr. Cecil Roberts denunciara no livro de Bahadur "a dúplice, inverossímel tutela de Wilkie Collins e do ilustre persa do século XII, Ferid Eddin Attar" - pacífica observação que Guedalla repete sem novidade, mas num dialeto colérico. Essencialmente, ambos os escritores concordam: os dois indicam o mecanismo policial da obra, e seu undercurrent místico. Essa hibridação pode levar-nos a imaginar certa semelhança com Chesterton; logo comprovaremos que não há tal coisa.
 
A editio princeps da Aproximação a Almotásim apareceu em Bombaim, em fins de 1932. O papel era quase papel-jornal; a capa anunciava ao comprador que se tratava do primeiro romance policial escrito por um nativo de Bombay City. Em poucos meses, o público esgotou quatro edições de mil exemplares cada uma. A Bombay Quaterly Review, a Bombay Gazette, a Calcutta Review, a Hindustan Review (de Alahabad) e o Calcutta Englishman dispensaram-lhe seu ditirambo. Então Bahadur publicou uma edição ilustrada que intitulou The conversation with the man called Al-Mu'tasim e que subtitulou magnificamente: A game with shifting mirros (um jogo com espelhos que se deslocam). Essa edição é a que Vítor Gollanez acaba de reproduzir em Londres, com prólogo de Dorothy L. Sayers e com omissão - quiçá misericordiosa - das ilustrações. Tenho-a à vista; não consegui obter a primeira, que pressinto muito superior. Autoriza-me a isso um apêndice, que resume a diferença fundamental entre a versão primitiva de 1932 e a de 1934. Antes de examiná-la - e de discuti-la - convém que eu indique rapidamente o curso geral da obra.
 
Seu protagonista visível - nunca se nos diz seu nome - é estudante de Direito em Bombaim. Blasfematoriamente, descrê da fé islâmica de seus pais, mas, ao declinar a décima noite da lua de muharram, encontra-se no centro de um tumulto civil entre muçulmanos e hindus. É noite de tambores e invocações: entre a multidão adversa, os grandes pálios de papel da procissão muçulmana abrem caminho. Um ladrilho hindu voa de uma sotéia; alguém afunda um punhal num ventre; alguém - muçulmano, hindu? - morre e é pisoteado. Três mil homens lutam: bastão contra revólver, obscenidade contra imprecação. Deus, o Indivisível, contra os Deuses. Atônito, o estudante livre-pensador entra no motim. Com as mãos desesperadas, mata (ou pensa haver morto) um hindu. Atroadora, eqüestre, semi-adormecida, a polícia do Sirkar intervém com rebencaços imparciais. Foge o estudante, quase sob as patas dos cavalos. Busca os últimos arrabaldes. Atravessa duas vias ferroviárias ou duas vezes a mesma via. Escala o muro de um desordenado jardim, com uma torre circular no fundo. Uma chusma de cães cor de lua (a lean and evil mob of mooncoloured hounds) emerge dos rosais negros. Acossado, busca amparo na torre. Sobe por uma escada de ferro - faltam alguns lances - e no terraço, que tem um poço enegrecido no centro, dá com um homem esquálido, que está urinando vigorosamente, agachado, à luz da lua. Esse homem lhe confia que sua profissão é roubar os dentes de ouro dos cadáveres trajados de branco que os parses deixam nessa torre. Diz outras coisas vis e menciona que faz quatorze noites que não se purifica com bosta de búfalo. Fala com evidente rancor de certos ladrões de cavalos de Guzerat, "comedores de cães e de lagartos, homens enfim tão infames como nós dois". Está clareando: no ar há um vôo baixo de abutres gordos. O estudante, aniquilado, adormece; quando desperta, já com o sol bem alto, desapareceu o ladrão. Desapareceram também um par de charutos de Trichinópoli e umas rupias de prata. Diante das ameaças projetadas pela noite anterior, o estudante resolve perder-se na Índia. Pensa que se mostrou capaz de matar um idólatra, mas não de saber com segurança se o muçulmano tem mais razão que o idólatra. O nome de Guzerat não o deixa, e o de uma malka-sansi (mulher da casta dos ladrões) de Palanpur, muito preferida pelas imprecações e ódio do despojador de cadáveres. Argúi que o rancor de um homem tão minuciosamente vil importa em elogio. Decide - sem maior esperança - buscá-la. Reza e empreende com lentidão firme o longo caminho. Assim acaba o segundo capítulo da obra.
 
Impossível traçar as peripécias dos dezenove restantes. Há uma vertiginosa pululação de dramatis personae - para não falar de uma biografia que parece esgotar os movimentos do espírito humano (desde a infâmia até a especulação matemática) e de um peregrinar que compreende a vasta geografia do Indostão. A história começada em Bombaim segue nas terras baixas de Palanpur, demora-se uma tarde e uma noite à porta de pedra de Bikanir, narra a morte de um astrólogo cego numa cloaca de Benares, conspira no palácio multiforme de Katmandu, reza no fedor pestilencial de Calcutá, no Machua Bazar, contempla nascer os dias no mar desde um cartório de Madras, vê morrer as tardes no mar de uma sacada no Estado de Travancor, vacila e mata em Indapur e conclui sua órbita de léguas e de anos na mesma Bombaim, a poucos passos do jardim dos cães cor de lua. O fugitivo que conhecemos, cai entre pessoas da classe mais vil e se acomoda a elas, numa espécie de certame de infâmias. De súbito - com o milagroso espanto de Robinson ante a pegada de um pé humano na areia - percebe certa mitigação dessa infâmia: uma ternura, uma exaltação, um silêncio, num dos homens detestáveis. "Foi como se tivesse cruzado armas no diálogo um interlocutor mais complexo." Sabe que o homem vil que está conversando com ele é incapaz desse momentâneo decoro; daí postula que este refletiu um amigo, ou amigo de um amigo. Repensando o problema, chega a uma convicção misteriosa: Em algum ponto da Terra há um homem de quem procede essa claridade; nalgum ponto da Terra está o homem que é igual a essa claridade. O estudante resolve dedicar sua vida a encontrá-lo.
 
Já o argumento geral se entrevê: a busca insaciável de uma alma através dos tênues reflexos que esta deixou em outras: no princípio, o leve rastro de um sorriso ou de uma palavra; no fim, esplendores diversos e crescentes da razão, da imaginação e do bem. À medida que os homens interrogados conheceram mais de perto Almotásim, sua porção divina é maior, mas se acredita que são simples espelhos. O tecnicismo matemático é aplicável: o pesado romance de Bahadur é uma progressão ascendente, cujo termo final é o pressentido "homem que se chama Almotásim". O imediato antecessor de Almotásim é um livreiro persa de suma cortesia e felicidade; o que precede esse livreiro é um santo... Ao cabo dos anos, o estudante chega a uma galeria "em cujo fundo há uma porta e uma esteira barata com muitas contas e atrás um resplendor". O estudante bate palmas uma e duas vezes e pergunta por Almotásim. Uma voz de homem - a incrível voz de Almotásim - convida-o a passar. O estudante abre a cortina e avança. Nesse ponto o romance acaba.
 
Se não me engano, a boa elaboração de tal argumento impõe ao escritor duas obrigações: uma, a variada invenção de rasgos proféticos; outra, a de que o herói prefigurado por esses rasgos não seja mera convenção ou fantasma. Bahadur satisfaz a primeira; não sei até onde a segunda. Em outras palavras: o inaudito e não contemplado Almotásim deveria deixar-nos a impressão de um caráter real, não de uma desordem de superlativos insípidos. Na versão de 1932, as notas sobrenaturais rareiam: "o homem chamado Almotásim" tem seu bocado de símbolo, mas não carece de traços idiossincrásicos, pessoais. Infelizmente, essa boa conduta literária não persistiu. Na versão de 1934 - a que tenho à vista - o romance decai em alegoria: Almotásim é emblema de Deus e os pontuais itinerários do herói são, de alguma forma, os progressos da alma na ascensão mística. Há pormenores aflitivos: um judeu negro de Kochin, ao falar de Almotásim, diz que sua pele é escura; um cristão o descreve sobre uma torre com os braços abertos; um lama vermelho recorda-o sentado "como essa imagem de manteiga de iaque que modelei e adorei no mosteiro de Tashilhunpo". Essas declarações querem insinuar um Deus unitário que se acomoda às desigualdades humanas. A meu ver, a idéia é pouco estimulante. Não direi o mesmo desta outra: a conjetura de que também o Todo-Poderoso está em busca de Alguém, e esse Alguém de Alguém superior (ou simplesmente imprescindível e igual) e assim até o Fim - ou melhor, o Sem-Fim - do Tempo, ou em forma cíclica. Almotásim (o nome daquele oitavo Abássida que foi vencedor em oito batalhas, gerou oito varões e oito mulheres, deixou oito mil escravos e reinou durante o espaço de oito anos, de oito luas e de oito dias) quer dizer etimologicamente O procurador de amparo. Na versão de 1932, o fato de que o objeto da peregrinação fosse um romeiro justificava de maneira oportuna a dificuldade de encontrá-lo; na de 1934, dá margem à teologia extravagante que mencionei. Mir Bahadur Ali, vimo-lo, é incapaz de soslaiar a mais burlesca das tentações da arte: a de ser um gênio.
 
Releio o anterior e temo não ter destacado suficientemente as virtudes do livro. Há particularidades muito civilizadas: por exemplo, certa disputa do capítulo dezenove na qual se pressente que é amigo de Almotásim um contendor que não rebate os sofismas do outro, "para não ter razão de forma triunfal".
 
 
Entende-se ser honroso que um livro atual derive de um antigo: já que a ninguém agrada (como disse Johnson) nada dever a seus contemporâneos. Os repetidos mas insignificantes contatos do "Ulisses" de Joyce com a "Odisséia" homérica continuam escutando - nunca saberei por que - a atordoada admiração da crítica; os do romance de Bahadur com o venerado "Colóquio dos pássaros" de Farid ud-din Attar conhecem o não menos misterioso aplauso de Londres, e ainda de Alahabad e Calcutá. Outras derivações não faltam. Certo investigador enumerou algumas analogias da primeira cena do romance com a narrativa de Kipling On the City Wall; Bahadur as admite, mas alega que seria muito anormal que duas pinturas da décima noite de muharram não coincidissem... Eliot, com mais justiça, recorda os setenta cantos da incompleta alegoria The Faërie Queene, nos quais não aparece uma única vez a heroína, Gloriana - como salienta uma censura de Richard William Church (Spencer, 1879). Eu, com toda humildade, assinalo um precursor distante e possível: o cabalista de Jerusalém, Isaac Luria, que no século XVI propagou que o espírito de um antepassado ou mestre pode entrar na alma de um infeliz, para confortá-lo ou instruí-lo. Chama-se Ibbür essa variedade da metempsicose.(1)
 
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(1) No decurso desta notícia, referi-me a Mantiq al-Tayr (Colóquio dos pássaros), do místico persa Farid al-Din Abu Talib Muhammad ben Ibrahim Attar, a quem os soldados de Tule mataram, filho de Zingis Jan, quando Nishapur foi espoliada. Talvez não consiga resumir o poema. O remoto rei dos pássaros, o Simurg, deixa cair no centro da China uma pluma esplêndida; os pássaros resolvem buscá-lo, cansados de sua antiga anarquia. Sabem que o nome de seu rei quer dizer trinta pássaros; sabem que sua fortaleza está no Kaf, a montanha circular que rodeia a Terra. Empreendem a quase infinita aventura; superam sete vales, ou mares; o nome do penúltimo é Vertigem; o último se chama Aniquilação. Muitos peregrinos desertam; outros perecem. Trinta, purificados pelos trabalhos, pisam a montanha do Simurg. Enfim o contemplam: percebem que eles são o Simurg e que o Simurg é cada um deles e todos. (Também Plotino - Enéadas, V, 8, 4 - descreve uma extensão paradisíaca do princípio de identidade: Tudo, no céu é inteligível, está em todas as partes. Qualquer coisa é todas as coisas. O Sol é todas as estrelas, e cada estrela é todas as estrelas e o Sol.) O Mantiq al-Tayr foi vertido ao francês por Garcin de Tassy; ao inglês, por Edward Fitzgerald; para esta nota, consultei o décimo volume das Mil e uma noites de Burton e a monografia The persian mystics: Attar (1932), de Margaret Smith.
Os pontos de contato desse poema com o romance de Mir Bahadur Ali não são excessivos. No vigésimo capítulo, umas palavras atribuídas por um livreiro persa a Almotásim são, talvez, a magnificação de outras que disse o herói; essa e outras ambíguas analogias podem significar a identidade do buscado e do buscador; também podem significar que este influi naquele. Outro capítulo insinua que Almotásim é o "hindu" que o estudante crê ter matado.
 


- Fim -

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