A exemplo de outras escolas esotéricas, o sufismo exige do buscador a presença de um mestre vivo, de um guia como no livro de Attar.
(...)
Quando William Blake escreve ''Eu te dou a ponta de uma corda de ouro, Apenas enrole ela numa bola; Ela te conduzirá á porta do Céu, Construída na muralha de Jerusalém'', ele não está usando uma terminologia privada e sim uma terminologia cujo rastro podemos seguir mesmo antes da EUROPA e segui-la através de DANTE ''questi la terra in s? stringe'' (Paradiso I.116 ), dos EVANGELHOS ''Ningún hombre viene a mí, excepto que el Padre… tire de él», San Juan 6:44, cf. 12:32 ), de FÍLON, y e de PLATÃO ( con sua «única corda de ouro» a que nós, as marionetes humanas, devemos agarrarnos e pelas quais devemos ser guiados, Leis 644), até HOMERO, onde Zeus pode tirar tudo de todas as coisas e até a si mesmo por meio de uma corda de ouro( Ilíada VIII.18 sigs., cf. Platón, Teeteto 153 ). E não é só na Europa onde o simbolismo do ''fio de ouro'' foi corrente por mais de dois milênios; tal simbolismo tbm se encontra presente em simbolismos islâmicos, hindus e chineses. Assim, lemos em Shams-i-Tabriz, «ELE me deu a ponta de um fio.… "Tira", disse "para que eu possa tirar: e cuida para que ele não se rompa com a ação"», e em Hafiz, «guarda sua ponta do fio, para que ELE guarde sua ponta''; no Shatapatha Brahmana, esse SOL é o nó ao qual todas as coisas estão atadas pelo fio do espírito, mientras que no Maitri Upanishad a exaltação do contemplativo se compara á subida de uma aranha pelo fio de sua teia; Chuang Tzsé nos diz que nossa vida está suspensa por Deus como se fosse um fio, que se corta quando morremos. Tudo isso se relaciona com o simbolismo do tecido e do bordado, os ''jogos de cordas entrelaççadas'', o cordel, a pesca com rede e a caça com laço; e com o simbolismo do terço, rosário e colar, pois, como nos recorda o Bagavad Gita ''todas as coisas estão entrelaçãdas com ELE como se fossem fileiras de pérolas em um fio''
(...)
Tú poderás ver também, como estas unidades, como o sentido (sensus) remonta á razão, a razão á inteligência, a inteligência á Deus, onde o início e a consumação se encontram, num perfeito curso circular.
(...)
A Alquimia gosta de imaginar sua opus (lápis philosophorum) como uma circulação,como destilação circular ou como 'uroboros' ou síntese perfeita que engendra o princípio e o fim, e nos descreveu este processo com numerosas imagens . Do mesmo modo que a representação central do lápis philosophorum significa o SI-MESMO, como se pode demonstrar, assim tbm o opus, com seus inúmeros símbolos, ilustra o processo inconsciente de individuação, istoé, a evolução gradativa do SI-MESMO de um estado inconsciente a uma completa TOMADA DE CONSCIÊNCIA. Por este motivo, a ''obra'' aparece como designação da matéria inicial (prima materia) tanto no inicío como no final do processo. O ouro - outro símbolo do SI-MESMO - surge, segundo Miguel Maier, do opus circulatorium (da atividade circulatória) do SOL. Este círculo é a linha reconduzida á si mesma e pela qual se conhece, verdadeiramente, aquele eterno pintor e criador de formas que é DEUS.
- Revista dos Alunos do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião - UFJF
"A Linguagem dos Pássaros" (Mantiq-at-Tayr) e a mística do
Islã
"The Conference of Birds" (Mantiq-at-Tayr) and the mystical of
Islam
Dilaci S. Faria1
Introdução
"Deus está mais próximo de nós do que nossa veia jugular"
(Corão, 50:16)
"A Linguagem dos Pássaros", Mantiq-at-Tayr ou "A Conferência dos
Pássaros" grande poema místico escrito na Pérsia do século XII por Faridud-Din Attar,
introduzido na Europa em 1863 pela tradução francesa de Garcin De Tassy, é uma
narrativa alegórica que apresenta a essência do pensamento sufi.
Trata-se de uma das maiores e mais importantes obras da literatura muçulmana
e também da literatura mundial, acolhida por importantes escritores europeus como
Cervantes, Chaucer, Milton, Dante, e também pelo argentino Jorge Luis Borges e pelo
mexicano Octavio Paz.
O remoto rei dos pássaros, o Simurg, deixa cair no centro da China uma pluma
esplêndida. Cansados de sua anarquia, eles vão em busca de seu rei. Sabem que sua
fortaleza está no Káf, a montanha circular que rodeia a Terra. Empreendem a quase
infinita aventura; superam sete vales, ou mares; o nome do penúltimo é Vertigem; o
último se chama Aniquilação. Muitos peregrinos desertam; outros perecem. Trinta,
purificados pelos trabalhos, chegam à montanha do Simurg. Enfim o contemplam
(Borges, s/d.).
"Attar" é tido como um dos três maiores
poetas místicos persas de todos os tempos, juntamente com Sanai e Djalal Ud-Din
Rumi. Além do seu "Diwan" (coletânea de versados religiosos) foi autor de diversos
"Masnavi" (esquema de dísticos com rima, adotados em poemas épicos, alegóricos ou
místicos) e de uma hagiografia, ou Memorial dos Santos, a "Tadhkriatal-Awita".
A narrativa descreve de maneira metafórica as etapas percorridas pelos
pássaros-homens para atingir um estado desconhecido da consciência humana, e por
isso colocado além da barreira de palavras e da mente. A esse estado ele nomeia de
Simurgh, que pode ser encontrado quando se pratica determinadas ações que levam o
homem ao despojamento de ilusões, dos falsos e mundanos ideais.
A proximidade de Allah com o homem é um marco na crença do Islã, palavra
que significa "entrega", "submissão" a Deus. Na citação inicial: "Deus está mais
próximo de nós do que nossa veia jugular" pode-se perceber a intensidade dessa
percepção e sentimento.
O Corão não é um tratado teológico, mas um livro sagrado que propõe
preceitos marcados pelo aspecto prático e ético. A comunidade muçulmana é mais
preocupada com a moral do que com as questões teológicas.
Os professantes da religião de Mohammad (Maomé) da península Ibérica
fizeram especulações em face de outra perspectiva de percepção do sagrado, fato que
fascinou os intelectuais e artistas muçulmanos incitando-os para a produção de um tipo
de expressão de sentimento religioso que os tornaram conhecidos mundialmente.
Nasceu um grupo que se tornou interprete dos ensinamentos corânicos, das palavras de
seu líder, com uma conotação diversa, ligada ao sentimento, à interiorização reflexiva
(esotérico) diferente do conhecido até então ligado à ortodoxia do texto sagrado
(exotérico). A proposta desses devotos foi o que passou a ser conhecido como
pensamento sufi.
Em razão da riqueza dos ensinamentos e da extensão do texto de Attar o que
me foi possível apresentar neste simples artigo é uma pálida descrição e singelos
comentários sobre os ensinamentos que o autor, de forma tão rica, oferece àqueles que
se interessam em tomar conhecimento da proposta que "A Linguagem dos Pássaros"
oferece. Com este objetivo agrupei os assuntos em cinco tópicos de modo a possibilitar
ao leitor uma rápida percepção do sufismo e da obra.
O Sufismo
O termo sufi procede de "suf", lã, ou hábito de lã usado pelos religiosos
ascetas. Os praticantes do sufismo, os sufis, entendem que é impossível chegar a Deus
somente pela inteligência, pela razão, pela vontade. Para o sufismo, a intuição é mais
importante que a racionalidade, e dogma é sempre a racionalização do que se teme ou se
deseja.
O sufismo não adota nada como sagrado, nem dogmas, nem símbolos, nem
ícones, nem templos, e é absolutamente flexível, adequando-se ao momento, ao
presente. O ensinamento sufi concentra-se na essência, o que importa, sempre, é a
interioridade.
Esse importantíssimo ramo da tradição esotérica foi mantido notadamente no
médio Oriente. A palavra esotérica possui precisamente a acepção do termo grego
"esoterikós", interior, e está relacionada à busca espiritual do homem, à procura do
autoconhecimento como caminho para atingir a verdade suprema.
Uma das enunciações do sufismo se ancora na shari'ah, religião positiva e a na
hagiqah, a ideia. A religião positiva é o aspecto exotérico, é o símbolo. A ideia, por sua
vez, é o aspecto esotérico de religião positiva, é o simbolizado. "O exotérico está em
perpétua flutuação como as ondas do mar, criando formas efêmeras de acordo com as
épocas e nações do mundo. Já o esotérico é uma energia divina, o fundo imutável dos
oceanos, que não está submetido à transformação, ao devir. Por tanto, a religião não
pode assumir um caráter dogmático. Para se chegar até ela são necessários iniciadores: a
"tariqa", ou o método para integrar os dois elementos componentes, a religião
exteriorizada e o Espírito essencial da espiritualidade divina.
Ali Shahem em "Princípios Gerais do Sufismo" reafirma que a essência do
conhecimento iniciático, no sufismo como em outras doutrinas esotéricas, tem como
denominador comum "a busca da verdade através de uma combinação de teoria e
prática", reforçando a ideia da necessidade de o buscador sufi ter um mestre, um guia
espiritual. O autor coloca ainda que atualmente existem quatro estágios pelos quais o
buscador sufi deve passar em seu caminho para a perfeição e união com a Essência
Divina. O primeiro, "Nasut", ou "Humanidade", tem como principal característica o fiel
cumprimento pelo neófito das "leis e cerimônias islâmicas". O segundo, o método,
"Tariqa", ou "Capacidade", dá ao buscador a condição de iniciado; ele deixa de ser um
neófito no caminho espiritual e se torna um sufi. O terceiro, "Araff" indica que os olhos
do buscador foram abertos e ele está de posse de conhecimento sobrenatural e interior.
E o estágio final, "Haqiqah", é o da "Verdade/Realidade", perfeita, plena e suprema
união da alma com a Divindade.
O mestre sufi deve ser entendido como alguém que já trilhou o caminho do
autoconhecimento e chegou a um nível de consciência maior, e por isso é um ser mais
integral. As práticas do sufismo podem se desenvolver para além do ensinamento oral,
ou seja, por meio de atividades especificas que passam pelos exercícios respiratórios e meditação. Atividades que apenas um mestre, empregando técnicas e métodos próprios
têm condições de prescrever ao discípulo.
Além disso, como afirma Faustino Teixeira, na palestra "As partes e o todo: o
apelo da mística Islã" em palestra na "X Semana de Filosofia da UFSJ", o caminho da
mística sufi é a lógica do coração e citou Muhammad Katami, ex- presidente do Irã,
para a compreensão das peculiaridades do pensamento islâmico, com vivos reflexos na
tradição sufi, que está aberta para a complexidade do real:
nossos grandes pensadores, embora cientes da indispensabilidade da razão, sabiam
que ela, sozinha, não poderia desvelar toda a realidade. Nossas tradições religiosas
pregam que, no final das contas é a fé no coração, e não no intelecto, que apreende a
realidade em sua totalidade (Kahatami, 2006, p. 61).
A maneira pela qual a tradição sufi acessou o real divino foi através do coração
que é como um espelho que reflete a luz da divina Realidade. No dizer de Henri Corban
para o sufismo o coração (qalb) é tido como "órgão sutil da percepção mística", capaz
de projetar a cada instante a presença diversificada das teofanias (Corban, 2001, p. 35).
O sufismo afirma o mistério da unidade da existência, mantendo viva a
consciência da relatividade das coisas, o que não o identifica com o panteísmo, como
apontou Frithjof Schuon, pois o panteísmo propõe uma concepção que pressupõe uma
continuidade entre o Infinito e o finito, entre o Princípio Ontológico e a ordem
manifesta. O sufismo não concede às coisas, em hipótese alguma, uma atribuição de
autonomia com respeito ao Ser ou ao Real (Schuon, 1991, p. 51-52).
A invocação "Deus é o Maior" (Allahu Akbar), expressão tão repetida pelos
muçulmanos sufis é prova dessa percepção, que é um viés de grandeza encontrado em
toda religião monoteísta. Os ensinamentos corânicos exaltam a grandeza de Deus e Sua
proximidade com o ser humano. A plenitude de Deus é sempre realçada no texto
sagrado muçulmano, como é possível observar na sura 112, com apenas quatro
versículos, que retrata a crença na grandiosidade e plenitude de Deus.
Dize: Ele é Allah, Único.
Allah é o Solicitado.
Não gerou e não foi gerado.
E não há ninguém igual a Ele.
(Corão, 50:16)
A proposta de Attar
"A Linguagem dos Pássaros" é um colóquio de aves através do qual o autor
conta a história de um bando de pássaros que resolve empreender uma viagem em busca
de um chefe, de um deus, de um sentido para a vida. Esse grupo se reúne em assembleia
e ouve falar no Simurg, pássaro formidável, que foi eleito para ser seu Rei.
Attar, com alto caráter simbólico, em fala ritmada, conduz o leitor a uma
peregrinação pelo cotidiano da Pérsia do século XII, através de uma comitiva que
conseguiu reunir, "todos os pássaros do mundo" para juntos se aproximarem de Simurg,
o rei dos pássaros. Para fazerem esse percurso foi eleita como guia, como mensageiro
divino, a poupa (folhaonline, 29/05/2008), ave típica da região. "A Linguagem dos
Pássaros" apresenta de forma inteligente e instigadora, entremeadas com a narrativa
principal, parábolas, histórias da tradição muçulmana como de Layla e Majnum (casal
persa de namorados), das mariposas, de príncipes e mendigos, de dervixes, de sheihks e
profetas. Essas histórias cadenciam o ritmo das aventuras dos pássaros, conduzidos pela
poupa, de modo a dar uma pausa ao leitor para assimilar os ensinamentos desses
viajantes.
A busca da compreensão do mistério da presença de Deus, que é sempre maior
do que qualquer ser humano possa imaginar, é uma das características de todo texto que
procura levar os iniciados a um entendimento verdadeiro de Sua grandeza por meio do
encontro com Simurg, rei dos pássaros, pois os homens, de modo geral, têm dificuldade
em entender esse mistério.
A simples leitura do livro, porém, não faz de ninguém um sufi, nem mesmo um
iniciado no sufismo. A exemplo de outras escolas esotéricas, o sufismo exige do
buscador a presença de um mestre vivo, de um guia como a poupa foi para os pássaros.
Os estágios pelos quais o buscador passa na sua viagem aparecem de maneira alegórica
na narrativa de Attar e o resultado final é conseguido quando os pássaros viajantes
encontram Deus e se encontram em Deus.
No dizer de Leo Gilson Ribeiro a filosofia mística arábico-persa que sustenta
ser o espírito humano uma emanação do divino, no qual se esforça para reintegrar-se, "A
Linguagem dos Pássaros", de Faridud-Din Attar, é um
relato cheio de magia e encanto que nos revela o deslumbramento de uma das
supremas meditações místicas mundiais: a linguagem desses pássaros é uma
iniciação ao caminho ético e divino, uma forma de Tao persa, que indica o
comportamento moral correto ao seguidor de uma das mais belas e acessíveis
ramificações do Islamismo (Ribeiro, s/d.).
O texto, tantas vezes comovente, dirige-se ao intelecto, à compreensão e
interpretação das mais altas verdades que a alma humana possa alcançar. É o coração o
alvo dessas palavras revestidas de nobreza, desapego a todo e qualquer materialismo,
regido somente pelo amor ao próximo e o desejo ardente, radical, de se atingir a
Origem, Deus, através dos percalços dolorosos da vida até se chegar à unio mystica com
a Divindade.
A história contada de maneira metafórica incita o raciocínio dos leitores com
alusões que propiciam um entendimento sutil. Os pássaros podem ser homens comuns
ou, em outra exegese, os próprios adeptos do sufismo em busca de Verdade eterna e
imutável.
No livro, a ave mais nobre, a poupa, conhecida também como mensageira do
Rei Salomão, conduz os pássaros rumo a Fênix, Deus eternamente ressurgido e
resplandecente. Só alguns pássaros chegam até Simurgh. (trinta pássaros).
O pássaro Simurg seria a metáfora do mestre perfeito e a manifestação de Deus
como é também o eu interior, o que se encontra na palavra de Ali (o quarto califa e
primeiro ímã xiita), quando diz: "Aquele que chega a se conhecer, ou a adquirir o
conhecimento do seu eu, conhecerá seu Deus".
A Invocação
Nos moldes do texto sagrado do Islã, Attar abre a narrativa com uma Invocação
de louvor ao Santo Criador da alma com alusão à criação do mundo descrita no Corão,
2:111, semelhante a Gênesis, I, 3; e aos Salmos, XXXII, 9. Prossegue em seguida:
Deus produziu o vento, a terra, o fogo, o sangue; por estas coisas Ele anuncia Seu
segredo. Ele colheu a terra a amassou-a com a água; depois de quarenta manhãs,
colocou nela a alma, e esta deu vida ao corpo. Deus deu-lhe inteligência para que ela
tivesse o discernimento das coisas. Quando viu que a inteligência estava de posse do
discernimento, deu-lhe a ciência, para que pudesse apreciar tudo o que lhe havia sido
conferido. Quando o homem tomou posse de suas faculdades, confessou sua
impotência e submergiu no espanto; então seu corpo entregou-se aos atos exteriores.
Amigos ou inimigos, a sabedoria impõe a todos inclinar a cabeça sob o jugo de
Deus; e, coisa admirável! Ele vela por todos nós (Attar, 1991, p 3).
"Deus é tudo, e as coisas têm somente um valor nominal. Sabe que o mundo
visível e o mundo invisível são Ele mesmo. Não há nada além dele, e o que é, é
Ele"(Attar,1991, p. 4).
Mais a frente, o escritor refere-se ao mistério da criação do ser humano ao
dizer:
Quando a alma uniu-se ao corpo, tornou-se a parte e o todo: nunca se fez um talismã
mais maravilhoso.
Formou-se um amálgama de terra vil e espírito puro. Por esta mescla o homem
tornou-se o mais admirável dos mistérios. Ninguém, no entanto teve conhecimento
desse segredo, e de fato, não é assunto para qualquer indigente. Qualquer coisa que
queiras dizer, o melhor é guardar silêncio, pois ninguém poderia lançar um suspiro
sobre esse tema (Attar,1991, p. 5).
Attar finaliza sua invocação exaltando o sofrimento pelo qual o Líder dos
Profetas passou por causa de injúrias e maldades, sem se esquecer de antes mencionar o
sofrimento de Cristo ao pé da cruz, de João Batista, com sua cabeça degolada, de
Zacarias, morto em silêncio. Não deixou de relembrar as lamentações de Adão, de Noé
que sofreu mil anos nas mãos dos ímpios, de Abraão, o desafortunado Ismael,
sacrificado no amor divino, de Jacó que ficou cego de tanto chorar por seu filho, de
José, na escravidão, no poço e na prisão. Mencionou ainda na sua invocação Jó, estirado
na terra com vermes e lobos; de Jonas que se perdeu no caminho e foi parar no ventre de
um peixe, a baleia; de Moisés que ao nascer foi colocado numa cesta e o faraó exaltouo;
referiu-se ainda a David que se ocupava fazendo armaduras e a Salomão de quem
apoderou-se um djim, espírito.
Em seguida vem a primeira Parábola. Depois o Elogio a Mohammad, o Senhor
dos Enviados. Narra uma História Alegórica e Elogios a Abu Beker, o primeiro amigo
do Profeta e pai de sua última esposa, Aisha, fala sobre Omar o segundo Califa, sobre
Osman, o terceiro também sobre Ali, o quarto Califa sucessor de Mohammad, dentre
outros temas, encerrando essa introdução com a "Oração de Mohammad".
A Invocação feita por Attar mostra um místico profundamente ligado e
respeitoso aos ensinamentos corânicos. Com essa característica de comprometimento e
atenção com e aos ensinamentos do Corão chega-se ao primeiro capítulo que inaugura a
narrativa da grande viagem.
A Busca de Deus
O tema divide-se em sete partes: a procura, a paixão, o conhecimento, o
desinteresse perfeito, a unidade em Deus, a estupefação e a anulação de si mesmo no
Bem-Amado. É desse modo que começa a busca do neófito que supera cada dificuldade
que surge nesse caminho, até alcançar e desvelar sua miragem pessoal permitindo assim
contemplar uma realidade absoluta desprovida de fantasias. A necessidade do
simbolismo é evidente, uma vez que, a ignorância da meta final faz com que para
alcançar essa meta a maneira seja pela eliminação. Sabendo o que "não é", a mente
descobrirá finalmente "o que é".
A narrativa começa com o interesse que um grupo de pássaros (mais de mil)
sentiu de procurar e encontrar o seu Rei. Como eles não podiam fazer isso sem um guia,
reuniram-se em assembleia e pediram ajuda à sábia poupa para efetuarem a busca.
A poupa lhes disse que o rei que estavam procurando, Simurg vivia escondido na
montanha de Kaf. Explica a eles que a viagem para chegar até lá era muito difícil e
perigosa. Os pássaros imploram à poupa que os guiassem e, para isso, elegem-na como
a condutora.
Ela aceita a missão e começa a ensinar a cada pássaro de acordo com seu nível
de conhecimento e temperamento. Diz a eles que para alcançar o alto da montanha, Kaf,
necessitariam atravessar sete vales sendo os últimos dois desertos. Só quando
conseguissem passar o segundo deserto entrariam no palácio do rei. Os de vontade
débil, temerosos da viagem, começaram a dar desculpas (Attar,1991, p. 49).
O papagaio, egocêntrico e egoísta, disse que no lugar de ir em busca do rei, iria
procurar a fonte da vida: "a fonte de Hidr basta-me"; o pavão real, a ave legendária do
paraíso, exclamou que sonhava que voltaria ao céu e que iria esperar pacientemente esse
dia; a pata lamentou-se porque sua vida dependia de estar próxima da água e morreria
caso se separasse dela; a garça apresentou uma desculpa similar, não poderia viajar para
longe do mar, porque seu amor pela água era tão grande que, embora permanecesse
sentada durante anos à sua margem, sem beber uma só gota de sua água, ficaria a
contemplá-lo. A cada desculpa a poupa percebia quão frágil era o ânimo do fraco
buscador.
A coruja, ou o mocho, declarou que preferia ficar e buscar as ruínas com a
esperança de encontrar nelas, algum dia, um tesouro; o rouxinol disse que não iria
viajar, porque era enamorado da rosa e este amor tornara-se suficiente para ele, ninguém
conhecia os seus segredos, unicamente a rosa. Havia se esquecido de si mesmo e só
pensava na rosa. "Alcançar a Simurg está acima de mim" (Attar, 1991, p. 49).
A poupa, entendendo o sentimento de insegurança dos pássaros, exortou-os
com a narrativa daqueles que tinham feito a perigosa viagem. Convencidos com suas
histórias os pássaros decidem então ir até o primeiro vale. Entretanto, logo começam a
ter problemas, e se dão conta de que o caminho seria mais difícil do que haviam
imaginado.
Recomeçam as justificativas para desistência da jornada. Um afirma que a
poupa não é suficientemente sábia para conduzi-los. Outro se queixa que Satanás lhe
tem possuído e lhe está pondo as coisas difíceis. Há ainda o que expressa seu desejo de
ter dinheiro e a comodidade de uma vida de luxo. A poupa decide então descrever- lhes
os sete vales e desertos da viagem.
O primeiro vale que se apresenta é o da busca (talab); o que vem depois é o do
amor (ischc), o qual não tem limites; o terceiro é o do conhecimento (ma´rifat); o quarto
é da independência ou da autossuficiência (istgna); o quinto é o da pura unidade
(tauhid); o sexto é o da terrível estupefação (hairat); finalmente o sétimo é o da pobreza
(fakr) e do aniquilamento (fana), vale do qual não se pode avançar
Em seguida faz a descrição dos vales e dos desertos. O Vale da Busca onde se
procura a Verdade com inquietude, com constância, para obter um significado maior do
propósito da vida. Só um ser realmente interessado e com dedicação pode atravessar a
salvo o primeiro vale e ir ao segundo vale, o do Amor
O Vale do Amor, onde há o desejo ilimitado de ver o Rei Amado. Um fogo
abrasador começa a crescer no coração e se faz devastador. O lugar é mais perigoso que
o primeiro vale, porque há obstáculos no caminho para colocar o amor em prova.
Entretanto, esse mesmo amor impulsiona o buscador a sair desse vale e ir até uma terra
mais alta: o terceiro vale, o do Conhecimento.
Quando se entra nessa terra, no Vale do Conhecimento o coração se ilumina
com a verdade. É nesse Vale que se adquire o conhecimento interior do Amado. Do
Vale do Conhecimento o viajante continua a viagem ao Vale do Desapego, onde perde
seus desejos de possessões mundanas. Não há ataduras com o mundo material para o
viajante que atravessa esse vale. Cada novo lugar em que ele consegue chegar é mais
perigoso que o anterior e deve ser explorado passo a passo, uma vez que cada um
contém suas próprias provas e dificuldades. Assim, toda chegada a uma terra diferente é
uma experiência nova.
O quinto vale é o Vale da Unidade. O viajante experimenta nele que todos os
seres são unos em essência, que toda variedade de ideias, experiências e criaturas da
vida tem realmente e apenas uma só fonte, Deus. Depois o viajante chega ao Deserto do
Medo. Então se esquece da existência de si mesmo e de todos os demais. Vê a luz, não
com os olhos da mente, sim com os olhos do coração. A porta do divino tesouro, o
segredo dos segredos, se abre. Nessa terra o intelecto já não funciona. Aqui se pergunta
ao viajante quem é ele e a resposta é: "não sei nada". Finalmente chega- se ao Deserto
do Aniquilamento e da Morte. Ai chegando o viajante se percebe como uma gota que se
funde no oceano da unidade com o Amado.
Depois de ouvirem a descrição da poupa sobre o que lhes esperava os pássaros
se animam tanto que imediatamente continuam sua viagem.
O Encontro
No caminho, no entanto, alguns sucumbem pelo calor, outros nas violentas
ondas do mar. Outros simplesmente se cansam e desistem de continuar; um grupo é
caçado por animais selvagens e outros se detêm tanto pelo atrativo das terras que
atravessaram que ficam para trás. Só trinta alcançam a montanha de Kaf, onde
encontrariam Simurg, seu Rei. Estavam cansados, depenados, famintos, com o coração
sofrido, mas haviam finalmente conseguido chegar ao destino idealizado.
No portal de entrada do reino, o arauto real os aguarda. "Viemos reconhecer
Simurgh, o nosso Rei," dizem os pássaros. "Mercê do amor e do desejo dele perdemos a
razão e a paz de espírito... sofremos os maiores desconfortos e passamos as maiores
necessidades" (Attar, 1991, p. 228) falam eles ao se aproximarem. No entanto, são
tratados com desprezo pelo guardião, que impede a entrada desses sofredores.
"Não podemos acreditar que o rei faça pouco de nós depois de todos os
sofrimentos por que passamos. Ele só poderá contemplar-nos com os olhos da
benevolência!" (Attar,1991, p. 229).
Os pássaros, que passaram o pior, não desistem e com suas lamentações
procuram convencer o arauto que lhes negou a entrada. Só traziam consigo reclamações
e relato dos infortúnios. O recepcionista real lhes explica que não poderiam chegar ao
Amado dessa maneira, com lamúrias e queixas. Como se aproximar do Amado só
falando com queixumes e reclamações da viagem? Precisavam chegar a Ele felizes por
terem vencido todos os obstáculos e de poderem finalmente conhecê-Lo.
Eles não se permitiram ficar molestados com a dureza da negativa. "Como se
salvará da chama a mariposa que deseja unir-se a ela?" Reagiram e se comparam à
mariposa que se entregara por amor à chama e fora queimada por ela. Preferiam serem
aniquilados no fogo do amor como a mariposa do que viver sem experimentarem a
ventura de conhecer o seu Rei. Tendo-os colocado à prova e finalmente se convencido
do amor e da convicção dos trinta pássaros o arauto real abriu a porta e os levou ao
salão nobre.
As cem cortinas foram descerradas e o mundo se apresentou sem véus para
esses pássaros. E o que aconteceu? Cada um deles recebeu um escrito que, por
alegorias, descrevia o estado desolado em que se encontravam. E nada mais.
E Simurg, o rei dos Pássaros que tanto queriam encontrar, onde estaria? Eles
estavam sozinhos na sala real. O que seria aquilo? Estavam sem entender. Só então
descobriram o que procuravam na viagem. Eles só se viam a si mesmos, pois naquele
local não havia ninguém. E o Rei Simurg? Perplexos, tudo o que viram eram a eles
próprios, isto é os trinta pássaros, si-murg em persa.
O sol da proximidade dardejou seus raios sobre eles, e suas almas tornaram-se
resplandecentes, então no reflexo de seu rosto, os trinta pássaros (si murg)
mundanos contemplaram a face do Simurg espiritual. Eles apressaram-se a olhar o
Simurg que encontraram e asseguraram-se de que não era outro que si-murg (trinta
pássaros). Todos estavam estupefados; ignoravam se continuavam sendo eles
mesmos ou se haviam se convertido no Simurg (Attar,1991, p. 232).
Em seguida entregaram-se à meditação em busca da revelação do mistério da
unidade e da pluralidade dos seres. Finalmente compreendem que, olhando-se a si
mesmos, tinham encontrado o Rei, e que em busca do Rei, tinham encontrado a si
mesmos. Attar procura por meio de seu texto fazer com que o buscador em nenhum
momento deixe de sonhar com a busca da Verdade.
Somos vizinhos um do outro;
Tu és como o Sol, e eu como a sombra.
Ó Tu que és generoso com os indigentes!
Por que não prestarás atenção a Teus vizinhos?
Meu coração está triste, minha alma aflita.
O ardor me leva a Ti faz correr as minhas lágrimas
Como a água da nuvem.
Sinto não poder estar unido a Ti;
No entanto não Ti busco menos.
Ah! sê meu guia, pois perdi-me de meu caminho!
Dá-me a felicidade, ainda que venha a
Pedir-Te intempestivamente.
Aquele que teve a fortuna de entrar em Tua vida
Desapegou-se de si mesmo e perdeu-se em Ti.
Não estou sem esperanças, mas estou impaciente.
Espero que de cem mil tomarás um (Attar,1991, p. 10).
Após passarem por todas as atribulações de anos e anos de viagem, os pássaros
mortais entregaram-se, por si próprios, ao aniquilamento total. O que se segue após o
aniquilamento não foi objeto de reflexão de Attar. O mistério continua, mas enquanto os
homens estiverem preocupados com as coisas do mundo, não se porão no caminho à
procura do seu Deus.
"Enquanto tua alma não estiver a serviço do Rei eterno, como Ele te aceitará
aqui? Enquanto não encontrares o rebaixamento do nada não verás jamais a elevação da
imortalidade. Primeiro és lançado no caminho espiritual com envilecimento, depois és
elevado com honra" (Attar,1991, p. 234).