domingo, 8 de dezembro de 2019

Escrito com a aspiração de que mais ensinamentos de Trungpa Rinpoche venham à tona em português, em particular Transcending Madness. Dzongsar Khyentse Rinpoche, durante ensinamento sobre o livro no centro de Trungpa Rinpoche em Halifax, o elogiou como sendo “o mesmo que um tantra raiz”. Um texto sobre os seis bardos bastante difícil, também foi extremamente louvado por Lama Padma Samten em várias ocasiões Por Padma Dorje

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O primeiro livro budista que comprei num centro de darma foi o Comentário Sobre o Ngondro, Instruções Para as Práticas Preliminares Concisas do Budismo Tibetano, de Chagdud Khadro, alguns meses antes de iniciar a prática das preliminares. Nesse livro havia uma menção a Trungpa Rinpoche:
Um praticante ocidental recentemente escreveu sobre um encontro com seu lama, o falecido Chögyam Trungpa Rinpoche, detentor irrefutável de realização espiritual, também famoso por beber muito. Sentado numa sacada, Trungpa Rinpoche fez um sinal ao aluno para que viesse ajudá-lo a caminhar até o quarto. Enquanto carregava Trungpa Rinpoche, o aluno sentiu cheiro de álcool. Quando entraram no quarto, Rinpoche se voltou e disse, “Parece que você tem tido problemas ao meditar, não é?” e fez um gesto na direção de umas almofadas. “Sente ali e medite para mim.”
Quando se sentou, um pensamento cruzou a mente do aluno: “O que esse bêbado pode fazer por minha meditação?” Anos depois do acontecido, ele relatou “Após um tempo sentado em meditação eu o senti em minha cabeça, cortando aquela amarra, desfazendo esse nó e retirando aquele alfinete até que o topo de minha cabeça passou a flutuar livre, e eu atingi uma visão de 360 graus.”
Quando o aluno se curvou para ir embora, Trungpa Rinpoche aconselhou, “Sempre separe o homem do professor.”
Um tempo depois, Lama Padma Samten recomendou Trungpa Rinpoche de forma bastante entusiástica. Uma cópia de “Além do Materialismo Espiritual” dentro de um saco plástico com um post-it “oferenda” estava sobre uma mesa no escritório do CEBB – alguém havia deixado como presente para o centro –, e, após alguns dias olhando para aquele livro perdido, perguntei ao lama se era tudo bem se eu pegasse para ler. A resposta foi “Sim, professor extraordinário, ensinamentos preciosos”. Fiquei muito impressionado que alguém tão certinho, tão evidentemente moralmente ilibado como de fato é o Lama Samten, recomendasse e louvasse tão francamente Trungpa Rinpoche.
Esse é um padrão que se repetiu ao longo dos anos: os professores mais extraordinários, poderosos e gentis invariavelmente louvavam abertamente Trungpa Rinpoche. A lista inclui Sua Santidade o Dalai Lama, Sua Santidade o Karmapa, Dilgo Khyentse Rinpoche, Dzongsar Khyentse Rinpoche, Traleg Rinpoche e muitos outros. De fato, atualmente, se quero examinar um professor, faço o caminho oposto: pergunto sua opinião sobre Trungpa Rinpoche. Se há qualquer crítica, ou mesmo hesitação, perco imediatamente a confiança.
A máxima crítica que aceito é uma como a de Robert Thurman: “se ele não bebesse tanto, teria vivido mais e beneficiado mais seres”. Porém, mesmo o professor Thurman compreende que os meios hábeis dos seres extraordinários são incompreensíveis para nossas expectativas espaço-temporais. A quantidade de projetos e o legado que Trungpa Rinpoche deixou no seu curto período de 18 anos nos EUA é absolutamente inconcebível. Um mestre como ele opera efetivamente além do tempo e além de qualquer forma particular manifesta.
Dzongsar Khyentse Rinpoche chegou a dizer que as duas únicas comunidades budistas que ele viu funcionando realmente bem no ocidente foram a de Trungpa Rinpoche e a de Chagdud Rinpoche.
Posso dizer até que, francamente, sem Trungpa Rinpoche, minha afinidade pelo budismo teria permanecido extremamente superficial – talvez bastante temporária. Nossa cultura é tão degenerada, e eu, pessoalmente, estou em tanta sintonia com essa degeneração, que valores explicitamente positivos, a princípio, não me atraiam (o que me atraia era exatamente a imagem contraditória de um professor budista alcoolizado, sem nenhuma vergonha de beber, sem nem mesmo esconder o fato – coisa até então inédita para mim). A dissonância cognitiva disso – embora eu mesmo nunca tenha tido grande interesse pelo álcool – me era absolutamente fascinante.
Também ajudava pensar que alguém com um defeito tão humano pudesse ter realização espiritual. Havia alguma chance para alguém como eu.
Algumas pessoas têm o mérito de olhar para um monge de cabeça raspada ou para a figura do Buda e, imediatamente, sentir devoção, querer espelhar aquelas qualidades. Já outras, como eu, sentem devoção por professores esquisitos e ultrajantes, como os mahasiddhas da Índia – professores budistas realizados com uma aparência tão fora dos padrões que, como Dzongsar Khyentse Rinpoche descreve, “você pode achar a ideia da figura deles legal, mas se algum realmente batesse a sua porta, você chamaria é a polícia”.
Creio que não há problema com nenhum dos dois enfoques e em iniciar com qualquer um deles – monge certinho, ou “buda rebelde” –, desde que em determinado ponto larguemos nossos julgamentos e ambos os estilos produzam devoção. O próprio Buda Sakyamuni, em vários sutras mahayana, incitou seus alunos para que renascessem por todo lado – em lugares degradados ou mesmo em âmbitos mundanamente considerados elevados, mas onde a espiritualidade normalmente não penetra. Deste modo, há mestres realizados no budismo que foram bandidos, prostitutas, reis, acadêmicos, vaqueiros etc. Isso (o Vajrayana, de forma geral) é uma tradição budista reconhecida e com mais de mil anos de história.
Se alguém tem problema com mestres estranhos ou controversos – e realmente é raro que sejam seres de fato realizados como Trungpa Rinpoche (há muito mais mestres falsos, com qualquer aparência, do que verdadeiros) – o melhor é, em todo caso, procurar um professor como Sua Santidade o Dalai Lama. Isto é, alguém que se manifesta na forma de um monge de ética muito pura, reconhecido por milhares de pessoas por sua compaixão ou erudição. Na impossibilidade de ser ele mesmo (porque ele é muito famoso e talvez inacessível como professor pessoal para a maioria das pessoas), alguém semelhante que tenha recebido o aval de muitos mestres. No entanto, algumas vezes de fato é compensador ir atrás dos selvagens, particularmente se eles efetivamente têm o aval aberto e irrestrito de outros grandes mestres que, por sua vez, preenchem o estereótipo de “bom budista” ou “budista bonzinho”. Aí há realmente algo a observar. Esse é o caso de Trungpa Rinpoche, não é algo comum.
Por Padma Dorje
Entre esses livros o tão esperado “Crazy Wisdom”, de Trungpa Rinpoche: justamente uma explicação dos Oito Nomes do Guru – com o enfoque duplo nos ensinamentos mais elevados do budismo tibetano e uma perspectiva “psicológica” ou “metafórica” palatável aos obstáculos intelectuais (superstições materialistas) contemporâneos. Uma preliminar para exatamente o tipo de Ioga do Guru presente na Essência do Siddhi. Naquela época eu morava de favor na casa da falecida mãe do Lama Samten, Dona Talita, uma casa que também era a sede do CEBB Porto Alegre. Eu, no ápice do meu momento “vagabundo do darma”, tinha muito tempo livre. Absolutamente fascinado pela profundidade dos ensinamentos, decidi traduzir o livro – sem ninguém me pedir e sem um público específico em mente. Talvez, a princípio, como um modo de eu mesmo me relacionar mais diretamente com o conteúdo daquele texto fascinante.
A tradução seguiu muito rápida. Por vários anos muitas pessoas que por acaso se deparavam com uma cópia, perguntavam quando sairia por alguma editora (eu sempre dizia que achava que nunca). Quatorze anos depois, graças à Lúcida Letra, o livro ganha uma edição. A tradução foi completamente revisada – não ficou parágrafo sem modificação.
A dúvida comum com relação a “Louca Sabedoria” é se ele se trata de um livro adequado para nossos tempos – se as pessoas terão interesse ou se serão capazes de entendê-lo e, talvez mais importante, se não distorcerão a ideia de louca sabedoria.
Alguma distorção é esperada, como a própria imagem de Trungpa Rinpoche pode causar alguns problemas em iniciantes. É comum que pessoas imaturas, mas com algum mérito de encontrar o darma, achem justificativas nas atitudes incompreensíveis de grandes mestres para seus próprios vícios ou idiossincrasias. “Ora, se Trungpa fumou, eu também posso fumar” etc. há vários formatos – mas esse é um erro que, em geral, é resolvido com uma semana de convívio com uma comunidade budista. Não imitamos a atitude externa dos professores. Não só porque eles são “maiores” do que nós (embora eles, em certo sentido, e no mais das vezes, sejam de fato incomensuravelmente “maiores”, ainda que no sentido relativo, que, se formos ver, é só o que conta em comparações mesmo…) – mas porque não estamos na posição daquela pessoa, não estamos na mesma circunstância espaço temporal, não vivemos com as mesmas expectativas e condições. Somos outra pessoa: a mesma ação vinda de nós tem outro sentido, tem outro resultado e tem outra motivação. Mesmo os alunos de Trungpa que tentaram agir como ele, em sua presença, receberam sinais claros de que “não era por aí”.
Em outras palavras, a menção de louca sabedoria e uma ideia superficial sobre ela, pode dar a entender que “vale tudo” no budismo. Mas copiar os mestres de forma leviana é o mesmo que se descobrir, no primeiro semestre de medicina, segurando o bisturi no meio de uma neurocirurgia. E ao começar a cortar o tecido, talvez só então, naquele momento crucial, dar-se conta de que esse negócio de ser médico não combina muito com você. Se, por acaso, a pessoa tem sorte, não terá cortado nada essencial, não terá causado nenhum dano mais profundo. Esse é o tipo de leviandade de copiar o comportamento ultrajante dos grandes professores. É certo que se quebrará a cara e, se for o caso, é melhor que se quebre a cara o quanto antes, porque se demorar muito, o estrago pode mesmo ser grande.
Por outro lado, se atentamos bem ao livro – ou aos ensinamentos dos grandes mestres em geral –, reconheceremos que a louca sabedoria, a sabedoria desmedida não tolhida por nenhum limite ou arrazoamento, que não é outra coisa senão compaixão totalmente destemida é, de fato, apenas a pura expressão de nossa “sanidade básica”, isto é, de nossa natureza de buda. O livro foca essa perspectiva bastante tradicional de que Guru Rinpoche é, no fundo, muito mais do que uma figura histórica, nada mais do que uma espécie de reflexo da nossa própria natureza.
Essa sanidade inata, quando reconhecida e deixada inalterada, se expressa de forma particularmente intensa e não negocia com nada e com ninguém. Ao mesmo tempo, se a pessoa lê as palavras “não negocia com nada e com ninguém” e tenta fabricar algo que chama de “sanidade básica”, embasada nesses conceitos forçados, passando a agir por louca sabedoria porque isso “parece legal”, então a resposta da sanidade inata inseparativa de todos os budas é imediata. Se temos mérito, quebramos a cara rápido, pela compaixão dos budas.
Também a capa do livro pode causar alguma confusão. Das oito formas de Guru Rinpoche de que o livro trata, duas são ditas “iradas”, Senge Dradok e Dorje Drolod. Para alguém que não conheça o budismo tibetano, eles têm a aparência de demônios. Porém, o que os budas de aparência irada expressam é essa forma de compaixão particularmente intensa, ligada ao reconhecimento direto da própria natureza.
O próprio Buda só chamou os maras (obstáculos, demônios, sendo um deles a fixação na ideia de um “eu”) para o combate quando atingiu a iluminação. Se alguém os chama para o combate, um instante que seja, antes da iluminação, tudo estará perdido. Todo o caminho budista se desfaz e o que era caminho budista se transforma numa espécie de prisão em que a incomodação, a projeção do nosso próprio “projeto de praticante” inacabado como um fantasma de justificação passa a ser incessante. E então perde-se muito tempo com sofrimento desnecessário. Pode levar bastante tempo até se achar um professor capaz de nos resgatar desse estado.
Porém, se reconhecemos a sanidade básica, podemos expressar as formas de Guru Rinpoche, e então lidar com maras ou com o que quer que seja, não é problema.
Após Além do Materialismo Espiritual e o Mito da Liberdade, que tratam da transição do mahayana para o tantra, Trungpa Rinpoche escreveu “O Rugido do Leão” (Lion’s Roar, não traduzido para o português), uma explicação dos nove veículos descritos pela tradição nyingma, sua primeira incursão nos ensinamentos vajrayana em livros publicados abertamente. Imediatamente após O Rugido do Leão, vem este Louca Sabedoria, Journey Without a Goal (“Jornada sem destinação”) e Orderly Chaos (“Caos Ordenado”) – os dois últimos sem tradução publicada.
Mas Louca Sabedoria, em certo sentido é um prenúncio dos livros mais sofisticados sobre budismo que Trungpa publicou antes de se dedicar mais aos termas “não necessariamente budistas” do caminho de Shambhala. O texto tem alguns momentos de efulgência e louca sabedoria direta, mas é bem mais acessível do que se fosse apenas isso. Ele, antes de tudo, explica que essa tradição existe e como se manifesta na relação com o professor, e em termos psicológicos. Então, embora algumas pessoas o situem como um ensinamento de topo, ele é mais como uma preliminar para ensinamentos avançados do que propriamente uma transmissão direta deles, embora tenha seus momentos.
Pessoas que precisam de explicações, que sentem devoção por Guru Rinpoche, e que sentem os obstáculos diretos das superstições materialistas são o alvo desse livro. Se você ainda não conhece Guru Rinpoche, também é um bom lugar para começar.
Além de seus potenciais perigos – facilmente dissipados com o mínimo de maturidade e inserção mínima em alguma comunidade budista –, esse é um livro definitivamente adequado para esses tempos degenerados. Particularmente entre aqueles tocados pelas bênçãos de Guru Rinpoche – aqueles em particular abertos à união das linhagens de Shechen Kongtrul e Dilgo Khyentse Rinpoche – para estes, os ensinamentos do Detentor Incessante de Rigpa, estado desperto intrínseco, Chogyam Trungpa Rinpoche são inestimáveis.
Escrito com a aspiração de que mais ensinamentos de Trungpa Rinpoche venham à tona em português, em particular Transcending Madness. Dzongsar Khyentse Rinpoche, durante ensinamento sobre o livro no centro de Trungpa Rinpoche em Halifax, o elogiou como sendo “o mesmo que um tantra raiz”. Um texto sobre os seis bardos bastante difícil, também foi extremamente louvado por Lama Padma Samten em várias ocasiões
Por Padma Dorje

sexta-feira, 28 de junho de 2019

LA LOCURA DE LA LUZ [JOUR]

MAURICE BLANCHOT
Traducción de José Jiménez, en BLANCHOT, Maurice: Textos, Editora Nacional, Madrid, 2002. Edición digital de Derrida en castellano

Yo no soy ni sabio ni ignorante. He conocido alegrías. Decir esto es demasiado poco: vivo, y esta vida me produce el mayor placer. Entonces, ¿la muerte? Cuando muera (tal vez dentro de poco), conoceré un placer inmenso. No hablo del sabor anticipado de la muerte que es insulsa y a menudo desagradable. Sufrir es embrutecedor. Pero tal es la verdad relevante de la que estoy seguro: experimento al vivir un placer sin límites y tendré al morir una satisfacción sin Imites.
He errado, he ido de un lugar a otro. Estable, he permanecido [demeuré] en una sola habitación. He sido pobre, después más rico, luego más pobre que muchos. De niño, tenía grandes pasiones, y todo lo que deseaba lo conseguía. Mi infancia ha desaparecido, mi juventud se ha quedado en el camino. No me importa: lo que ha ocurrido, me alegro por ello, lo que ocurre [ce qui est] me gusta, lo que viene me conviene.
¿Es mi existencia mejor que la de todos los demás? Tal vez. Yo tengo un techo, muchos no lo tienen. No tengo la lepra, no estoy ciego, veo el mundo, una suerte extraordinaria. Yo la veo, esta luz [jour] fuera de la cual no hay nada. ¿Quién podría quitarme eso? Y cuando esta luz [jour] se oscurezca, me oscureceré con ella, pensamiento, certeza que me arrebata.
He amado a algunos seres, los he perdido. Me volví loco cuando recibí ese golpe, porque es un infierno. Pero mi locura ha quedado sin testigos, mi extravío no era notado, sólo mi intimidad estaba loca. A veces, me ponía furioso. Me decían: ¿Por qué estás tan tranquilo? Ahora bien, estaba consumido de los pies a la cabeza; por la noche, corría por las calles, gritaba; durante el día [jour], trabajaba tranquilamente.
Poco después se desencadenó la locura en el mundo. Me pusieron entre la espada y la pared como a muchos otros. ¿Para qué? Para nada. Los fusiles no se dispararían. Yo me dije: Dios, ¿qué es lo que haces? Entonces dejé de ser insensato. El mundo dudó, luego recuperó su equilibrio.
Con la razón, me volvió la memoria y vi que incluso en los peores días, cuando me creía perfecta e enteramente desgraciado, era, sin embargo, y casi todo el tiempo, extremadamente feliz. Eso me hizo reflexionar. Este descubrimiento no era agradable. Me parecía que yo perdía mucho. Me interrogaba: ¿no estaba triste?, ¿no había sentido mi vida arruinarse? Sí, eso había sido; pero, cada minuto, cuando me levantaba y corría por las calles, cuando quedaba inmóvil en un rincón de la habitación, el frescor de la noche, la estabilidad del suelo me hacía respirar y descansar en la alegría.
Los hombres querrían escapar de la muerte, extraña especie. Y algunos claman, morir, morir, porque quisieran escapar de la vida. «Qué vida, yo me mato, me rindo.» Eso es lamentable y extraño, es un error.
Sin embargo, he encontrado seres que jamás le han dicho a la vida, cállate, y nunca a la muerte, vete. Casi siempre mujeres, bellas criaturas. A los hombres el terror los asedia, la noche los consume, ven sus proyectos aniquilados, su trabajo convertido en polvo. Ellos, tan importantes que querían construir el mundo, quedan estupefactos, todo se viene abajo.
¿Puede describir mis penalidades? No podía ni andar, ni respirar, ni alimentarme. Mi aliento era de piedra, mi cuerpo de agua, y sin embargo moría de sed. Un día, me hundieron en el suelo, los médicos me cubrieron de barro. Qué trabajo en el fondo de esta tierra. ¿Quién la considera fría? Es fuego, es una maraña de espinas. Me levanté completamente insensible. Mi tacto erraba a dos metros: si entraban en mi habitación, yo gritaba, sin embargo el cuchillo me cortaba tranquilamente. Sí, me quedé en los huesos. Mi delgadez, por la noche, se erguía para horrorizarme. Me injuriaba, me fatigaba yendo de un lado para otro; ah, ya lo creo que estaba fatigado.
¿Soy egoísta? No tengo sentimientos más que para algunos, piedad para nadie, raramente tengo ganas de agradar, raramente ganas de que se me agrade, y yo, para mí que poco menos que insensible, sólo sufro por ellos, de tal manera que su menor aprieto me provoca un mal infinito aunque, no obstante, si es necesario, los sacrifico deliberadamente, les suprimo todo sentimiento dichoso (llego a matarlos).
De la fosa de barro salí con el vigor de la madurez. Antes, ¿qué era yo? Un saco de agua, era una superficie muerta, una profundidad durmiente. (Con todo, sabía quién era, resistía, no caía en la nada.) Venían a verme de lejos. Los niños jugaban a mi lado. Las mujeres se tiraban al suelo para darme la mano. Yo también he tenido mi juventud. Pero el vacío me ha decepcionado mucho.
No soy miedoso, he recibido algunos golpes. Alguien (un hombre exasperado) me cogió la mano y clavó en ella su cuchillo. Cuánta sangre. Después, él temblaba. Me ofreció su mano para que yo la clavase sobre una mesa o contra una puerta. Porque me había hecho ese corte, el hombre, un loco, creía haberse convertido en mi amigo; echó a su mujer en mis brazos; me seguía por la calle gritando: «Estoy condenado, soy el juguete de un delirio inmoral, confesión, confesión.» Un extraño loco. Durante este tiempo la sangre goteaba sobre mi único traje.
Vivía sobre todo en las ciudades. Durante un tiempo he sido un hombre público. La ley me atraía, la multitud me gustaba. He sido una sombra en la masa. Siendo nadie, he sido soberano. Pero un día me cansé de ser la piedra que lapida a los hombres solos. Para tentarla, apelé dulcemente a la ley: «Acércate, que te vea cara a cara.» (Yo quería, por un instante, llevarla aparte.) Imprudente llamada, ¿qué hubiese hecho si ella hubiese respondido?
Debo confesarlo, he leído muchos libros. Cuando desaparezca, insensiblemente todos estos volúmenes cambiarán; más grandes los márgenes, más distendido el pensamiento. Si, he hablado con demasiadas personas. Ahora, ello me sorprende; cada persona ha sido un pueblo para mí. Ese inmenso prójimo me ha reportado mucho más bien de lo que hubiese querido. Actualmente, mi existencia es de una solidez sorprendente; incluso las enfermedades mortales me juzgan coriáceo. Me disculpo por ello, pero es necesario que yo entierre a algunos antes de mí.
Comenzaba a caer en la miseria. Ella trazaba círculos lentamente a mi alrededor, de ellos el primero parecía permitirme todo, el último no me permitía otra cosa que yo mismo. Un día, me encontraba enfermo en la ciudad: viajar no era más que una fábula. El teléfono dejó de contestar. Mis ropas se desgastaban. Tenía frío; la primavera, ¡pronto! Iba a las bibliotecas. Me junté con un empleado que me hacía descender a los bajos fondos ardientes. Para hacerle un favor, corría alegremente por pasarelas minúsculas y le traía volúmenes que luego él transmitía al sombrío espíritu de la lectura. Pero este espíritu lanzó contra mí palabras poco amables; bajo su mirada, yo empequeñecía; él me vio tal como yo era, un insecto, un animal con mandíbulas venido de oscuras regiones de miseria. ¿Quién era yo? Responder a esta pregunta me hubiese causado grandes problemas.
Afuera, tuve una corta visión: a dos pasos, justo en la esquina de la calle que yo debía abandonar, había una mujer parada con un carrito de niños, la percibía bastante mal, ella maniobraba el cochecito para hacerlo entrar por la puerta cochera. En ese instante entró por esta puerta un hombre al que yo no había visto acercarse. Ya había pasado el umbral cuando hizo un movimiento para atrás y volvió a salir. Mientras él permanecía al lado de la puerta, el cochecito, pasando delante de él, se alzó ligeramente para franquear el umbral y la joven, tras haber levantado la cabeza para mirar, desapareció a su vez.
Esta corta escena me exaltó hasta el delirio. Sin duda no podía explicármelo completamente y sin embargo estaba seguro, había captado el instante a partir del cual la luz, habiendo tropezado con un acontecimiento verdadero, iba a apresurarse hacia su fin. Ya llega, me dije, el fin viene, algo sucede, el fin comienza. Estaba embargado por la alegría.
Me dirigí a esta casa, pero sin entrar en ella. Por el orificio, veía el principio oscuro de un patio.
Me apoyé en el muro de afuera, tenía, por cierto, mucho frío; el frío me rodeaba de pies a cabeza, sentía que mi enorme estatura tomaba lentamente las dimensiones de este frío inmenso, se elevaba tranquilamente según las leyes de su legítima naturaleza y yo reposaba en la alegría y la perfección de esta dicha, por un instante la cabeza tan alto como la piedra del cielo y los pies en el pavimento.
Todo eso era real, sépanlo.
No tenía enemigos. No me molestaba nadie. A veces en mi cabeza se creaba una vasta soledad en la que el mundo desaparecía por completo, aunque salía de allí intacto, sin un rasguño, nada lo malograba. Estuve a punto de perder la vista, al machacarme alguien cristal en los ojos. Esa acción me estremeció, lo reconozco. Tuve la impresión de entrar en el muro, de errar en una maraña de sílex. Lo peor era la brusca, la horrorosa crueldad de la luz, no podía ni mirar ni dejar de mirar; ver era lo espantoso, y parar de ver me desgarraba desde la frente a la garganta. Además, escuchaba unos gritos de hiena que me ponían bajo la amenaza de un animal salvaje (esos gritos, creo, eran los míos).
Una vez quitados los cristales, me colocaron bajo los párpados una película protectora y sobre los párpados murallas de compresas de algodón. No debía hablar, porque las palabras tiraban de los puntos de la cura. «Usted dormía», me dijo el médico más tarde. ¡Yo dormía! Tenia que hacer frente a la luz de siete días: ¡un buen achicharramiento! Sí, siete días a la vez, las siete iluminaciones capitales convertidas en la vivacidad de un solo instante me pedían cuentas. ¿Quién hubiera imaginado eso? A veces, me decía: Es la muerte: a pesar de todo, vale la pena, es impresionante.» Pero a menudo moría sin decir nada. A la larga, me fui convenciendo de que veía cara a cara a la locura de la luz; esa era la verdad: la luz se volvía loca, la claridad había perdido el sentido; me acosaba irracionalmente, sin regla, sin objetivo. Este descubrimiento fue una dentellada en mi vida.
¡Dormía! Al despertar, tuve que oír a un hombre que me preguntaba: ¿tiene algo que denunciar? Extraña pregunta dirigida a alguien que acaba de tener relación directa con la luz.
Incluso sano, dudaba de estarlo. No podía ni leer ni escribir. Estaba rodeado de un norte brumoso. Pero he aquí lo extraño: aunque recordase el contacto atroz, languidecía viviendo tras unas cortinas y cristales ahumados. Yo quería ver algo a pleno día; estaba harto del agrado y contort de la penumbra; tenía para con la luz un deseo de agua y de aire. Y si ver significaba el fuego, yo exigía la plenitud del fuego, y si ver significaba el contagio de la locura, deseaba locamente esta locura.
En la institución se me concedió una pequeña posición. Yo respondía al teléfono. El doctor tenía un laboratorio de análisis (se interesaba por la sangre); la gente entraba, bebía una droga; echados en pequeños lechos, se dormían. Uno de ellos cometió una travesura notable: tras haber absorbido el producto oficial, tomó un veneno y cayó en coma. El médico lo consideraba una villanía. Resucitó y «se querelló» contra ese sueño fraudulento.
¡Encima! Este enfermo, me parece, merecía algo mejor.
Aunque tenía la vista apenas mermada, caminaba por la calle como un cangrejo, agarrándome firmemente a las paredes y, cuando las soltaba, con el vértigo alrededor de mis pasos. Sobre estos muros, veía a menudo el mismo anuncio, un anuncio modesto, pero con letras bastante grandes: Tú también, tú lo quires. Ciertamente, yo lo quería, y cada vez que me encontraba estas palabras considerables, lo quería.
Sin embargo, algo en mí cesó bastante rápido de querer. Leer me suponía una gran fatiga. Leer no me fatigaba menos que hablar, y la mínima palabra verdadera exigía de mí no sé qué fuerza que me faltaba. Me decían: usted se regodea con sus dificultades. Este propósito me sorprendía. A los veinte años, en la misma condición, nadie me lo habría notado. A los cuarenta, un poco pobre, me volvía miserable. ¿De ahí venía esta penosa apariencia? En mi opinión, se me pegaba de la calle. Las calles no me enriquecían como hubieran debido hacerlo razonablemente. Al contrario, al circular por las aceras, al internarme en la claridad de los metros, al pasar por admirables avenidas en las que la ciudad resplandecía magníficamente, me volvía extremadamente apagado, modesto y fatigado y, reuniendo una parte excesiva de la ruina anónima, atraía a continuación tanto más las miradas cuanto que no iban a mí dirigidas y me convertía en algo un tanto vago e informe; de tan influyente, ostensible que ella, la ciudad, parecía. Lo que es fastidioso de la miseria es que se nota, y los que la ven piensan: me están acusando; ¿quién me ataca? Yo no deseaba en absoluto portar la justicia sobre mis espaldas.
Me decían ( alguna vez el médico, otras las enfermeras): usted es instruido, tiene capacidades; al no emplear aptitudes que, repartidas entre diez personas a las que les faltan, les permitirían vivir, les priva de lo que no tienen, y su indigencia, que podría ser evitada, es una ofensa a las necesidades de ellos. Yo preguntaba: ¿Por qué estos sermones? ¿Es mi lugar lo que robo? Quítenmelo. Me veía rodeado de pensamientos injustos y de razonamientos malintencionados. ¿Y quién se enfrentaba contra mí? Un saber invisible del cual nadie tenía pruebas y que yo mismo buscaba en vano. ¡Era instruido! Pero quizás no todo el tiempo. ¿Capaz? ¿Dónde estaban estas capacidades que utilizan como jueces sentados con la toga en sus escaños y dispuestos a condenarme día y noche?
Yo quería bastante a los médicos, no me sentía minimizado por sus dudas. El problema es que su autoridad aumentaba de hora en hora. No nos damos cuenta pero son unos reyes. Abriendo mis habitaciones, decían: Todo lo que está allí nos pertenece. Se lanzaban sobre mis recortes de pensamiento: Eso es nuestro. Interpelaban a mi historia: Habla, y ella se ponía a su servicio. Rápidamente me despojaba de mí mismo. Les distribuía mi sangre, mi intimidad, les prestaba el universo, les daba la luz. A sus ojos, en nada asombrados, me convertía en una gota de agua, una mancha de tinta. Me reducía a ellos mismos, pasaba todo entero bajo su vista, y cuando, al fin, no tenían presente más que mi perfecta nulidad y ya nada más que ver, muy irritados, se levantaban gritando: Y bien, ¿dónde está usted? ¿Dónde se esconde? Esconderse está prohibido, es una falta, etc.
Detrás de sus espaldas yo percibía la silueta de la ley. No la ley que nosotros conocemos, que es rigurosa y poco agradable; aquélla era otra. Lejos de caer bajo su amenaza, era yo quien parecía asustarla. De creerla, mi mirada era el rayo y mis manos motivos para perecer. Además, ella me atribuía ridículamente todos los poderes, se declaraba perpetuamente a mis pies. Pero no me dejaba pedir nada y, cuando me reconoció el derecho de estar en todos los lugares, ello significaba que no tenía sitio en ninguna parte. Cuando ella me colocaba por encima de las autoridades, eso quería decir: usted no está autorizado para nada. Si se humillaba: usted no me respeta.
Yo sabía que uno de sus fines era «hacerme administrar justicia». Ella me decía: «Ahora, eres un ser aparte: nadie puede nada contra ti. Puedes hablar, nada te compromete; los juramentos ya no te vinculan; tus actos permanecen sin consecuencias. Tú me pisoteas, y yo habré de ser para siempre tu sirviente.» ¿Una sirviente? No lo quería a ningún precio.
Ella me decía: «Tú amas la justicia. —Si, me parece. —¿Por qué dejas que en tu persona tan notable se falte a la justicia? —Pero mi persona no es notable para mí.
—Si la justicia se debilita en ti, se vuelve débil en los otros, que sufrirán por ello. —Pero este asunto no le compete. —Todo le compete. —Sin embargo usted me lo ha dicho, estoy aparte.
—Aparte, si actúas; nunca si dejas a los demás actuar.»
Ella estaba cayendo en palabras fútiles: «La verdad es que nosotros ya no nos podemos separar. Te seguiré por todas partes, viviré bajo tu techo, tendremos el mismo sueño.»
Yo había aceptado dejarme encerrar. Momentáneamente, me dijeron. Bien, momentáneamente. Durante las horas al aire libre, otro residente, un anciano de barba blanca saltaba sobre mis hombros y gesticulaba por encima de mi cabeza. Yo le decía: «¿Así que eres Tolstoi?» El médico me consideraba por ello bastante loco. Finalmente paseaba a todo el mundo sobre mi espalda, un nudo de seres estrechamente enlazados, una sociedad de hombres maduros, atraídos allá arriba por un vano deseo de dominar, por una chiquillada desgraciada, y cuando me derrumbaba (porque yo no era al fin y al cabo un caballo), la mayoría de mis camaradas, ellos también desplomados, me vapuleaban. Eran momentos gozosos.
La ley criticaba vivamente mi conducta: «En otro tiempo lo he conocido muy diferente. —¿Muy diferente? —No se burlaban de usted impunemente. Verlo costaba la vida. Amarlo significaba la muerte. Los hombres cavaban fosas y se enterraban para escapar a su vista. Se decían entre sí: ¿Ha pasado? Bendita la tierra que nos cubre. —¿Se me temía hasta ese punto? —El temor no le bastaba, ni las alabanzas desde el fondo del corazón, ni una vida recta, ni la humildad en las cenizas. Y sobre todo que no se me interrogue. ¿Quién osa pensar incluso en mí?»
Ella se encolerizaba singularmente. Me exaltaba, pero por ponerse a mi altura: «Usted es el hambre, la discordia, la muerte, la destrucción. —¿Por qué todo eso? Porque soy el ángel de la discordia de la muerte y del fin. —Bueno, le decía, con todo esto ya tenemos más que de sobra para que nos encierren a los dos.» La verdad es que ella me agradaba. En ese ambiente superpoblado de hombres era el único elemento femenino. Una vez me hizo tocar su rodilla: una extraña impresión. Yo le había declarado: No soy hombre que se contente con una rodilla. Su respuesta: ¡Eso sería asqueroso!
He aquí uno de sus juegos. Ella me enseñaba una porción del espacio, entre el alto de la ventana y el techo: «Usted está allí», decía. Yo miraba ese punto con intensidad. «¿Está usted ahí?» Yo lo miraba con todo mi poder. «¿Y bien?» Notaba saltar las cicatrices de mi mirada, mi vista se volvía una llaga, mi cabeza un agujero, un toro reventado. De repente, gritó: «Ah, veo la luz, ah, Dios», etc. Yo me quejaba de que ese juego me fatigaba enormemente, pero ella era insaciable de mi gloria.
¿Quién te ha arrojado cristales en la cara? Esta pregunta la retomaban en todas las preguntas. No me la proponían muy directamente, pero era la encrucijada a la que conducían todos los caminos. Me habían hecho observar que mi respuesta no descubriría nada, porque desde mucho tiempo atrás todo estaba descubierto.
«Razón de más para no hablar. —Veamos, usted es instruido, sabe que el silencio atrae la atención. Su mutismo lo traiciona de la forma menos razonable.» Yo les respondía: «Pero mi silencio es verdadero. Si se lo escondiese, lo encontrarían un poco más lejos. Si el me traiciona, tanto mejor para ustedes, les favorece, y tanto mejor para mí, al que ustedes declaran servir.» Tuvieron que remover cielo y tierra para poner fin a esto.
Yo estaba interesado en su investigación. Todos éramos como cazadores enmascarados. ¿Quién era interrogado? ¿Quién respondía? Uno se volvía el otro. Las palabras hablaban solas. El silencio entraba en ellos, refugio excelente, pues nadie más que yo lo advertía.
Me solicitaron: Cuéntenos cómo ha pasado todo «exactamente». —¿Un relato? Comencé: Yo no soy ni sabio ni ignorante. He conocido alegrías. Decir esto es demasiado poco. Les conté la historia toda entera, que ellos escuchaban, me parece, con interés, al menos al principio. Sin embargo, el final fue para nosotros una común sorpresa. «Después de este comienzo, decían, vaya a los hechos.» ¡Cómo es eso! El relato había terminado.
Debí reconocer que no era capaz de formar un relato con estos acontecimientos. Había perdido el sentido de la historia, eso ocurre en muchas enfermedades. Pero esta explicación sólo los volvía más exigentes. Observé entonces por primera vez que ellos eran dos, que esta alteración en el método tradicional, aunque se explicase por el hecho de que uno era un técnico de la vista, el otro un especialista en enfermedades mentales, le daba constantemente a nuestra conversación el carácter de un interrogatorio autoritario, vigilado y controlado por una regla estricta. Ni uno ni otro, en verdad, era comisario de policía. Pero, siendo dos, a causa de ello eran tres, y este tercero quedaba firmemente convencido, estoy seguro, de que un escritor, un hombre que habla y que razona con distinción, es siempre capaz de contar unos hechos de los que se acuerda.
¿Un relato? No, nada de relatos, nunca más.
Maurice Blanchot

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Operando aberturas sensíveis: poética-poiese

Em termos bastante genéricos dizemos que há duas maneiras de invocar "destruiçoes necessárias": a do poeta, que fala em nome de uma potencia criadora, apto a reverter todas as ordens e todas as representaçoes, para afirmar a Diferença no estado de revoluçao permanente do eterno retorno; e a do político, que se preocupa, antes de tudo, em negar o que "difere" para conservar, prolongar uma ordem estabelecida na história ou para estabelecer uma ordem histórica que já solicita no mundo as formas de sua representaçao. (DELEUZE)

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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812010000100012

Descartes (1999) vence o solipsismo de sua dúvida com o chao duro da razao sem corpo, pura abstraçao auto-referente a pairar em um vazio que será preenchido por suas eternas idéias geométricas e matemáticas perfeitas. Nesta aventura de vencer as ilusoes de sarcásticos demônios zombeteiros, abandona a espada flamejante do arcanjo e a troca por uma lâmina de frias luzes com o fio mais fino que o da navalha de Ockan e passa a partir as coisas e colocá-las em seus devidos lugares. Para além do empirismo caótico e intuitivo dos aristotélicos e sua vassoura de cerdas desaprumadas Bacon (1999), agora seria possível dar "chumbo a imaginaçao", pregando-a a promessa do Método Moderno. Para tanto, era necessário nao apenas delimitar o campo empírico, dado e estrito, como também era preciso erigir um método totalmente lúcido, pura razao pura de formas perfeitas e simétricas tal qual os paralelogramas da inteligencia divina agostiniana. E como a imagem do Deus de Santo Agostinho fomos feitos: pura intelecçao, entendimento, apenas consciencia sem corpo seríamos em essencia. Definida nossa racional natureza racional, basta entao definir nossos demais atributos e anulá-los de algum modo: fluídos animais, afetos e imaginaçao deveriam ser iluminados pelo inteligível: "E nao se deve inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas descobri-lo" (BACON, 1999, p.109). Assim, mirando para o empírico diante de nós, nossa alma pode ativamente extrair o inteligível campo próprio ao conhecimento.
Enquanto a sensaçao é o efeito da pressao dos objetos exteriores sobre os órgaos dos sentidos, os quais por sua vez levam suas impressoes até o cérebro, a imaginaçao é apenas uma capacidade de fazer permanecer estas aparencias dos objetos em nossa mente, sendo a nomenclatura latina para o que os gregos chamavam fantasia (HOBBES, 1999). Trata-se, portanto, do delírio do entendimento, posto que "[...] o objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusao outra" (HOBBES, 1999, p. 32). É apenas a razao que permite a sanidade dos sentidos, fazendo-os ir além das aparencias até as essencias gerais e eternas.
Por outro lado, as certezas buscadas também podem limitar a complexidade da vida, uma vez que elas nos impoem certa sobriedade para com o mundo. E, diante de suas artimanhas, aceitamos a sua solidez. Há, porém, um pulsar que escapa aos códigos e normas prescritas, já que relança os sentidos a novas produçoes e descobertas. Um encontro entre séries divergentes invade a nossa suposta orientaçao, ao tirarmos o ser do amornamento ilusório de que o mundo nos pertence, ou de que a distinçao entre o pensar e o sentir seria necessária. Nesse ponto, o sentido, embriagado de sua atualidade, encharca-se com novas tramas e cores, e se joga no embate múltiplo entre afeto, razao e fragmento inventado. Com isso, abrimos mao de um método previsível e feito por procedimentos universalizantes, para nos tornarmos efeitos de superfície e experimentarmos as complexidades da linguagem e de suas proliferaçoes.
Para Deleuze (2006a, p.10), a antiga profundidade se desdobrou na superfície, e o "devir ilimitado se desenvolve agora inteiramente nesta largura revirada". Nao importa, pois, o que vem antes, ou o que gera o ser, mas a sua meta-estabilidade, o desequilíbrio transformado em reviravolta de simulacros. Reviramos, entao, as causas ou a previsibilidade das coisas, para nos recobrirmos com novos agenciamentos, tramas inventadas entre elementos múltiplos que se desdobram e invadem o saber e o nao saber, numa narrativa feita de mistérios e aberturas ao intempestivo movimento da vida, tornada maquinaçao e aventura. 
Nesse movimento inusitado, compomos brechas, entre o saber e o non-sense, tal qual uma trama inventada que precisa de uma nova configuraçao. E, mais do que buscar as respostas, deixamos que as perguntas se contaminem com o problemático entorno daquilo que nao se sabe, daquilo que ainda nao tem existencia, mas que insiste, persiste, no jogo duplo dos sentidos inventados. A previsibilidade e o procedimento perdem a importância, já que o método se enlaça a trama dos sentidos misturados, naquilo que o porvir define a cada encontro em contaminaçao com o outro.
Desse modo, ao pensarmos no inteligível, que era concebido enquanto puramente racional e abstrato, podemos agora considerar sua constituiçao híbrida e paradoxal, que o torna também sensível: a abstraçao age no mundo e sua açao nao é apenas concreta, como também está para além do racional, envolvendo os afetos e as afecçoes do corpo. Do mesmo modo, o que chamamos de sensível, e que era considerado a pura sensaçao, concretude variável no tempo, passa a ser também inteligível, a pensar e a problematizar junto ao corpo que também é mente, mentindo mundos verdadeiros vários, construídos por estas forças para além da divisao entre entendimento e sensaçao, epistemologia e ontologia.
Em meio a um plano composto de elementos heterogeneos, o pensar se contamina com o sentir, ambos tornam-se cúmplices de um estranhamento repentino, que os convocam a uma abertura e a uma nova imbricaçao. Nesse devaneio inventado, o corpo encontra o incorpóreo, como se desejasse a sua própria abstraçao, levada a mais alta potencia, roubada de seu antigo vigor, transformada em vertigem sutil. O pensar se enreda com o Fora, nesse plano Impessoal e múltiplo, que carrega, em si, um repertório de sentidos misturados, no tempo de Aion, dos Acontecimentos que provocam tensao e ruptura.
Assim, nao se trata da especulaçao de um mundo interno que sobe a superfície, tampouco buscamos o descobrimento de uma verdade em essencia. Ao cartografar, tentamos produzir os deslizes do eu, bem como o desmanche daquilo que já fazia sentido, para que, dessa falha, seja possível convocar a perfuraçao de mundos e o seu próprio estremecimento. Nesse aspecto, cartografamos as desmesuras da paisagem e escrevemos aquilo que transborda o sentir e o pensar, tal qual um devaneio que encontra uma casa e se transforma em abstraçao colocada em sonho. Conforme Foucault (2006, p.268), na escrita, nao se trata da amarraçao do sujeito em uma linguagem, "trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve nao pára de desaparecer". O sensível se envolve com o conhecer, há um entrelaçamento de idéias e açoes. Pesquisamos, entao, aquilo que nos convoca e atormenta, e tornamo-nos cúmplices de suas audácias e desatinos.
Dessa finitude e estranheza, a noçao de obra também se transforma, uma vez que a marca do escritor, ou do pesquisador, nasce da singularidade de sua ausencia. Escrevemos, ou pesquisamos, no limite daquilo que nao sabemos, ou do que já nao somos mais. Vivemos o tormento de transitar entre o sonho e a aventura da maquinaçao de sentidos. E, nesse jogo caótico, pensamento e sensaçao se imbricam numa estória embrulhada, ao fazerem coexistir as séries divergentes e ao diferir enredos entrelaçados. O método pode, entao, compor uma dobra das composiçoes da existencia, ao costurar os nós entre afeto, cogniçao e abertura cósmica.
Logo, a criaçao, a invençao, fatores antes relegados ao ostracismo epistemico, passam a fazer parte das operaçoes de construçao do conhecimento e constituiçao de intervençoes. Intervir, aqui, implica a interferencia, o corte, a ruptura que convém ao corpo, ao relançá-lo as aventuras de experimentaçao do pensamento. Nesse intrépido estilo cartográfico, podemos compor as narrativas dos encontros inventados e saborear as delícias de um recomeço tornado origem menor, genese inventada, sujeito infame. Por meio de inquietaçoes e desconhecimentos, abrimos o corpo para a sua fissura, para aquilo que o torna estranhamento e dúvida. No limite das ausencias inventadas, escrevemos ou compomos a descoberta do mundo, perante sua insaciável solidao e ternura.
Assim, a ficçao passa a ser o fundamento do documental, a criaçao do dado e o delírio do bom senso: "O delírio está no fundo do bom senso, razao pela qual o bom senso sempre é segundo" (DELEUZE, 1988, p. 363). Perante o dado tornado menor, razao segunda, podemos sofrer com o intempestivo do acaso, tal qual um lance de dados que convoca a variaçao. Devemos, portanto, fazer delirar as coisas, aos modos, subvertendo seus regimes e provocando clinamens que abrem os fluxos.
Em termos bastante genéricos dizemos que há duas maneiras de invocar "destruiçoes necessárias": a do poeta, que fala em nome de uma potencia criadora, apto a reverter todas as ordens e todas as representaçoes, para afirmar a Diferença no estado de revoluçao permanente do eterno retorno; e a do político, que se preocupa, antes de tudo, em negar o que "difere" para conservar, prolongar uma ordem estabelecida na história ou para estabelecer uma ordem histórica que já solicita no mundo as formas de sua representaçao. (DELEUZE, 1988, p. 101)
Nessa luta, temos a chance de fazer voltar todo o delírio que se enlaça aos avessos da história, na tentativa de contá-la de múltiplos modos, para além da previsibilidade das descobertas. Operamos a ética de um retorno que volta os possíveis a sua mais elevada potencia, para relançar a força criadora de afirmaçao de um porvir. Uma ética condicional supoe a chama dos enredos inventados de múltiplos modos e transforma o encontro entre narrativa e poética. Assim, o imperativo do como se pode tomar conta do corpo: viva como se cada instante voltasse eternamente, elevando a mais alta potencia o desejo de criaçao, e tornando o tempo a molecularizaçao da existencia replicada em configuraçoes diversas. Optamos por uma abertura que supoe a ética-estética da existencia, daquilo que já nao somos mais, do que estamos nos tornando, tal qual uma invençao de mundos estranhos e abertos a fluxos nômades. O desafio consiste em viver como se o delírio do verbo voltasse eternamente, ao fazer estremecer as relaçoes entre o falar e o sentir.    
Desse modo, vemos delinear-se a poética como operaçao potencializadora dos possíveis na cartografia. Partindo de "[...] uma idéia de poesia sempre excessiva" (DELEUZE, 1988, p.457), vamos pensar a poética como a poiética do desmedido, daquilo que transborda os sistemas de aceitabilidade e provoca novas intuiçoes que tomam ao corpo de assalto em novas imagens, novos gestos. Assim, o corpo encontra o incorpóreo, jogo extremo de superfícies ao avesso que se enlaçam e convocam a forma a se distorcer. Uma chama envolve a crítica e provoca açoes no pensamento, tornado passagem, envolto no excesso e na sensaçao maquínica das intensidades. Nessa mistura de heterogeneos, forma e força se afetam e dançam a melodia do extremo, como uma nova suavidade lançada ao acaso e tornada método de conhecer e inventar o mundo em sua potencia de expressao e desenlace.   
O humor, a farsa, o non-sense, o absurdo e o paradoxo permitem, pela arte, liberar os simulacros do grave jugo da representaçao: "A obra de arte abandona o domínio da representaçao para tornar-se 'experiencia', empirismo transcendental ou ciencia do sensível" (DELEUZE, 1988, p. 107). Um jogo ardiloso invade a certeza e provoca a desmesura, a degradaçao da verdade, aberta a novas possibilidades e açoes. Nao representamos, pois, o dito, mas envolvemos o nao-dito ao eterno retorno de suas reverberaçoes e promiscuidades.
Com a afirmaçao poética do desmedido, afirmamos uma política delirante onde o paradoxo dá o tom para a orgia sensível que se instaura. Importa, em nossa operaçao, sua poética efetuaçao poética, o erigir modos impuros, tomados do absurdo espantoso que prove o tônus do poeta: é girando manco, bebado em meio a dança, que se instaura a metaestabilidade gonza que vai sempre de viés cerzindo um tracejado incerto. Afirmar a poesia e o risco: "Como diz Nietzsche, entre os justos a afirmaçao é primeira, [...] Eis porque as verdadeiras revoluçoes tem também um ar de festa" (DELEUZE, 1988, p.424). Pensar da poesia que problematiza em virtualizaçoes a ultrapassagem da constituiçao de descriçoes e reduçoes formalistas: pensar de poesia que faz misturas alquímicas e aguarda a poçao explodir em suas maos.
Nao se trata da ciencia da arte nem da arte da ciencia, falamos antes de um híbrido formado na junçao escancarada destes: arte e ciencia, ciencia-arte, arte-ciencia. Poderíamos inclusive abandonar de uma vez por todas a partícula ciencia desta equaçao e dá-la sem ciúme, em baixela de prata adornada aos que buscam sempre serem seus únicos donos. Esta linha de tecnologia do sensível (FONSECA; COSTA; KIRST, 2008) que se afirma entre a ciencia e a arte nao se apresentam como uma novidade em nosso campo, pois diversas sao as experimentaçoes que já aconteceram neste sentido: o olho câmera de Dziga Vertov, a cartografia delirante da Roma de Fellini, as instalaçoes fotográficas entre os Lapoes de Jorma Puranen, os estudos do movimento anamorfomáticos de Marey, as projeçoes subversivas de Shimon Attie em Berlin. Tomar ao som, a imagem, ao corpo, a escrita, entre outras açoes, enquanto possibilidade de expressao de mundos, levando em consideraçao suas inevitáveis inteligibilidade sensível e sensível inteligibilidade: ponto brumoso do paradoxo. "A manifestaçao da filosofia nao é o bom senso, mas o paradoxo" (DELEUZE, 1988, p.364).
Nesse limiar, o paradoxo corre nos dois sentidos, ao mesmo tempo, entre o tempo de cronos, cronologia linear das coisas, e o tempo de Aion, Acontecimento das virtualidades em composiçao. Assim, fazemos o método trabalhar, na direçao da coexistencia entre arte e conhecimento, ou entre linguagem e nao-senso. Este, para Deleuze (1998), nao implica a ausencia de sentido, mas diz o seu próprio sentido, na composiçao de um murmúrio híbrido, aberto aos acasos que se envolvem e produzem novas rupturas e reverberaçoes. O elemento paradoxal torna-se nao-senso e envolve a bifurcaçao das séries, envoltas em complexidades e diferenças. Nao buscamos a clareza das coisas, mas a sua perpétua bifurcaçao e o embaralhamento de sentidos. Dispomos de um pequeno saber, envolto num emaranhado de virtualidades e desconhecimentos, que o interpelam e o desvirtuam de antigas argumentaçoes.      
Nesse trânsito complexo, os dados sao relançados as suas virtualidades, num tempo que se reinventa e se torna nova dobra do mundo. Compomos, nao a escrita de um presente, mas algo entre o que acabou de se passar, ou que vai se passar, tal qual um tempo rachado e cindido em presentes múltiplos, conectados por um passado-futuro por vir. Traçamos a arte dos recomeços, ou a poética das expressoes envoltas em alegrias e mistérios. Tentamos viver, entao, a aventura das escritas maquínicas, revestidas de estórias embrulhadas. E, ao fazer reverberar o verbo e a sintaxe, jogamos o sentido numa trama de coexistencias nômades que se contagiam e revelam a força das superfícies misturadas.
Segundo Deleuze (2006a), propomos uma linguagem em superfície que doa sentidos e mexe numa fronteira caótica, entre as proposiçoes e as coisas. Assim, um sentido é produzido na circulaçao entre séries singulares e heterogeneas, que se subdividem ao infinito e se enlaçam e novas possibilidades e perpetuaçoes. Entre a heterogenese das séries, pode nascer um novo recomeço, uma espécie de ética dos Acontecimentos que se envolve ao corpo do verbo e doa novo ritmo as palavras.
Da poética, a sintaxe se bifurca em proliferaçoes absurdas e beira as bordas de um sentido inventado e relançado a sua embriaguez. Assim, corpo e verbo fazem dobra, e convocam o delírio a transbordar os limites da linguagem e a atormentar os infinitivos com novas idéias e proliferaçoes. Nesse espirituoso murmúrio de indagaçoes, cartografamos o intempestivo jogo de afetos e produçoes desejantes, que fazem sentido na corda bamba entre o pensamento e a invençao: "No começo era o verbo, só depois é que veio o delírio do verbo. [...] A criança nao sabe que o verbo escutar nao funciona para cor, mas para som. Entao se a criança muda a funçao de um verbo, ele delira" (BARROS, 1998a, p.25)

*
Estilísticas: a ontologia estética dos modos

As operaçoes poéticas inserem o absurdo onde a linearidade e a conexao lógica imediata regiam. Fazem vibrar uma onda anômala de contágio que agita as singularidades nômades. Tal agitaçao poética das singularidades faz ressoar no impessoal uma melodia bastarda, dissonante perante o cânone da harmonia, levando ao corpo vibraçoes intempestivas que abrem novos possíveis. Vemos, entao, o surgimento de séries rebeldes, séries que se afirmam para além e aquém de modelos, sejam eles uma idéia inteligível ou mesmo uma coisa como referente substancial. A expressao e o sentido nao mais se reduzem a uma representaçao atrelada ao referente primeiro através do cordao razoável da verossimilhança. Adquirindo por si o status de ser, a partir de suas açoes no mundo, subvertem a própria noçao de mundo, produzindo outro pensamento que macula a natureza estável de um modo pensado pela forma e substâncias com a introduçao da paradoxalidade imanente: "Nao é próprio do simulacro ser uma cópia, mas reverter todas as cópias, revertendo também os modelos: todo pensamento torna-se uma agressao" (DELEUZE, 1988, p.17).

Assim, nao há o ponto de origem, do qual a expressao seria serva, que sirva de baliza ao expurgo dos bastardos e sua degradada relaçao de parentesco com a ontologia: o eterno retorno opera a dissoluçao da origem e do original, instituindo uma sucessao ilimitada de cópias, tudo retorna como cópia de si, aquém e além de modelos representativos e identitários. "Cada coisa, animal ou ser é levado ao estado de simulacro [...]" (DELEUZE, 1988, p.122). Tudo se tornou simulacro, e o simulacro nao consiste na reproduçao, na imitaçao de um modelo, mas sim, no próprio ato de reversao que subverte esta hierarquia binária: diluindo a oposiçao entre cópia e original, modelo e imitaçao, expressao e referente, etc.

Os simulacros ultrapassam a dualidade das proposiçoes entre designaçao de coisas e expressao de sentido, acolhendo aos efeitos, aos sentidos, as açoes e as expressoes, como se mais que coisas fossem. Colocamo-nos, entao, para além da reificaçao do ser em forma ou substância, posto que estes se dissolvem nos fluxos: a própria expressao já é. O problema da ausencia de designaçao, de referente no mundo das coisas, representaçoes ou modelos inteligíveis, nao é mais uma barreira ao simulacro. Importa sim seus efeitos, suas expressoes: sua potencia poética é sua força poiética e vice-versa 4. "Como diz Bergson, nao vamos dos sons as imagens e das imagens ao sentido: instalamo-nos logo de saída em pleno sentido" (DELEUZE, 2006a, p.31). Assim, o(a) fundamento da expressao nao se encontra na ponta de um dedo infantil a requerer e inquirir o sentido de um seio. Posto que nem o dedo é ponta, nem o seio coisa, mas ambos sao na expressao de um apontar, sem origem primeira ou fim último que lhes de os contornos do fundamento da designaçao.

Outra natureza é aí constituída, a ontologia se descola da substância e da forma compreendidas como causas do ser que produz as expressoes. Tudo se torna efeito, em um mundo de açoes que se relacionam sem a necessidade de um agente imóvel: "Portanto, atrás das máscaras há ainda máscaras" (DELEUZE, 1988, p.179). O disfarce e as máscaras nada mais sao do que operaçoes de deslocamento virtual entre as séries. Assim sendo, sao as máscaras e os disfarces que dao corpo as expressividades dos problemas. É o problemático e a imanencia que operam a univocidade e a contemporaneidade das séries divergentes, já que estas tem ao caos como único ponto de "convergencia original": tornando inviável a diferenciaçao entre original e cópia. É o eterno retorno que opera o fundo sem fundo, o a-fundamento destas séries divergentes, onde nao é o mesmo que retorna, mas sim o distinto, a diferença: a única constante é de variaçao.

A passagem do pseudo a superfície torna-o nao mais um ser acanhado afeito aos cantos onde a luz da verdade e o chinelo do juízo se fazem ausentes; antes, perde o caráter de pecado e o simulacro passa a ser o seu efeito, a açao que provoca e constitui as superfícies da vida: a potencia do falso é seu efeito. Tomado como açao, efeito, expressao, nao há mais cobrança de coerencia interna, mas sim atençao as relaçoes que constitui em seus agenciamentos: os estilos que cria em sua trajetória. Quando do pecado original, quando o homem abandonou a divindade do verbo e abraçou a carne animal e suas vibraçoes desumanas, quando decaímos em um simulacro de Deus, restando apenas sua imagem e nao sua semelhança tornamo-nos simulacros e, a partir disso, nao importou mais a nossa verdade essencial, mas sim o estilo, a retórica de nossa expressividade existencial. "Tornamo-nos simulacros, perdemos a existencia moral para entrarmos na existencia estética" (DELEUZE, 2006a, p.263). É exatamente esta natureza estética do simulacro que assegura aqui a concepçao do mundo a partir da estética: a este mundo cabe investigar e intervir com os operadores poéticos, questionando e criando retóricas existenciais, estilísticas do ser.

Nessa trama, o mundo se faz profano e mundano, rodeado de vazios e proliferaçoes. O nao-senso invade o sentido e provoca insanidades lingüísticas, rodeadas de estilo e vizinhança estética. Em suas rachaduras, podemos supor um movimento de contemplaçao inventiva, no momento em que a degradaçao do degradado supoe uma alteraçao menor, um pequeno simulacro, tal qual uma molécula transmutada em nova expressividade. Operamos, entao, com o mapeamento das fissuras e suas chances de irradiaçao de diferenças.

Dessa forma, a repetiçao na arte nao é a cópia da vida, a arte nao imita a vida e vice-versa, a arte desloca a substância fluída da vida, problematiza-a, apresentando-se nao como pretendente de suas verdades, mas antes se avivando arte e artificializando-se vida, acentuando na vida a vertigem dos simulacros.

Isto porque nao há problema estético a nao ser o da inserçao da arte na vida cotidiana. Quanto mais nossa vida parece standartizada [...], mais deve a arte ligar-se a ela e dela arrancar esta pequena diferença. (DELEUZE, 1988, p.460)

Assim, vida e estética podem se imbricar, num entrelaçamento de heterogeneos que supoe o plano do inteligível e do sensível em diferença e conexao recíproca, como assevera Barros (1998b, p. 81) "Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir".

Conforme Deleuze (2006b), podemos pensar a dramatizaçao como um método. Ela se faz por meio de dinamismos espaço-temporais, que supoem um movimento forçado, em direçao a um sujeito larvar, a um campo de individuaçao e de séries de diferenças intensivas. Aquilo que força supoe um duplo envolvimento entre corpos e singularidades, que se enredam e provocam um encontro entre diferenças e intensidades. Trata-se, pois, de um estranho teatro feito de determinaçoes puras, que agitam espaço e tempo, agem sobre a alma, tem larvas por atores. Nesse ponto, um modo de ser larvar recoloca o ser em contato com o rastejar de sua existencia, em direçao a novos percalços e virtualidades. A larva carrega, em si, a potencia embrionária da criaçao de novos possíveis relançados a uma estética da existencia. Em meio a um movimento tomado por uma lentidao plástica, um modo larvar se mistura com o meio e se associa a novas expressividades.

Deparamo-nos com modos larvares e fugazes que escorregam de si e serpenteiam frente ao inacabamento das coisas, ao suportar vazios e dramas. Para Deleuze (2006b), é o conhecimento científico, o sonho e também as coisas em si que dramatizam. Num jogo caótico de afetos e perceptos, o virtual coexiste ao atual e supoe corpos transmutados num porvir de novos enredos e inquietaçoes. O conceito diz de si e, ao mesmo tempo, desdiz a sua história, rompe com a significaçao que já nao lhe serve. Onde se quebram, pois, os limites de uma ciencia que desdenha a própria verdade e se torna moribunda de generalizaçoes, uma vez que acessa um repertório de novos possíveis e se avizinha com estéticas e tecnologias de si?

Assim, a um determinado conceito, podemos procurar e compor o drama a que ele corresponde. A coexistencia do atual e do virtual implicam uma melodia cósmica que faz o método tremer as bases e brincar com as próprias replicaçoes. Um plano caótico de singularidades pré-individuais invade os modos de conhecer, bem como de se tornar sujeito. Abrimos o abstrato e o religamos com as concretudes construídas, num ímpeto infame por novos ritmos para o pensamento. Fazemos tremer o sentido e o sensível, numa espécie de zona intermediária entre afeto e política cognitiva inventiva.

Abre-se agora a possibilidade de debruçar-se sobre o usual objeto da psicologia social de outra maneira. O desafio consiste em perceber no cotidiano o costume, nao como as regras formais que balizam o movimento das formigas em seu dia-a-dia, mas mirar o costume como a estilística da fantasia criada neste carnaval diário e vulgar em sua imanencia e comunalidade. Trata-se, entao, de mapear o jogo de simulaçao e aventura que atravessa o hábito e o torna vítima contemplativa de sua própria transfiguraçao. Com isso, o comum, o infame, o que se repete, carrega também a potencia de variaçao e recomeço, origem segunda de uma diferença inventada e vivida de incontáveis modos.

Em um método psi que desliza dos procedimentos certeiros e se enreda no nao saber e no desencantamento, a dúvida ganha consistencia e reverberaçao. O objeto se torna abandonado de seus mundos, entregue ao acaso e também ao movimento forçado que busca uma política larvar de cogniçao e maquinaçao da vida. E, em meio a entrega de si, o corpo sussurra palavras recriadas e experimenta vazios que o tiram de antigas lamentaçoes. O expresso nao se esconde na profundidade, mas se faz a partir de um deslizamento contínuo e imanente a vida. Ele desliza na movimentaçao de si, absorto em riscos e novas tentativas de duplicar imagens e proposiçoes. Por isso, a linguagem atual também é povoada por seus dramas, por um plano de virtualidades e singularidades impessoais, que podem desdobrar, a qualquer momento, o sentido e seus múltiplos.

Possibilitar, por exemplo, problematizar o balé dos movimentos rotineiros e compreender sua singular aventura de leveza, no lugar de somente imprimir-lhes seus verdadeiros sentidos ocultos nas mínimas minúcias geométricas cotidianas. Nesse ponto, o cotidiano dança diante dos olhos de um transeunte distraído, ao inventar piruetas carregadas de orgia e excentricidade. Ao mesmo tempo, a leveza consiste em fazer o problemático criar novos passos, entrelaçados com ritmos e melodias inventadas. O método pode desejar a problemática coreografia de possíveis que se recria a cada ensaio, aberta a uma suposta expressao intensiva.   

Desse modo, esperamos mirar suas imagens poéticas sem detratá-las como meras miragens esmerilhadas por um prestidigitador, apenas seguir as linhas que compoem seus turbilhoes, o cerzir de suas relaçoes. As paisagens configuram-se como resoluçoes dos agenciamentos territoriais. Paisagens existenciais sao os modos de ser da subjetividade, problematizados exatamente no ponto onde indiferenciam o olhar e o que é visto. Olhar e paisagem formam um ponto cego em seu encontro, no qual ambos se criam.

Nesse enlace paradoxal, a poética se imprime, mas também exprime suas reviravoltas e perplexidades. O indivíduo nao se compoe em uma relaçao figura e fundo com a paisagem, mas constitui-se como puro efeito da própria paisagem, produto e produtor de atualizaçoes de sua imanencia. Em suma, busca-se pensar com a poética, em última instância, como o plano da vida se cria e a potencia em dispersao virótica de variaçao entre as singularidades constitui as estilísticas: variaçoes de variaçoes.

A maior riqueza do homem é a sua incompletude. 
Nesse ponto sou abastado. 
Palavras que me aceitam como eu sou - eu nao aceito. 
Nao agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pao as 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que ve a uva etc. etc. 
Perdoai. 
Mas eu preciso ser Outros. 
Eu penso renovar o homem usando borboletas 

(Manuel de Barros, 1998b, p.79).

sexta-feira, 12 de abril de 2019

MARCUSE


http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692016000100012&fbclid=IwAR0N4uSppE5pTnkpoic8ibfD5nv83ZXNP1PdLLk_HkiQu-TzK3JUNHNe3TI

A forma como a sociedade organizou o aparato tecnológico demostra seu caráter totalitário. Como afirma Marcuse (1978, p. 23), "uma falta de liberdade confortável, suave, razoável, democrática prevalece na civilização industrial desenvolvida, um testemunho do progresso técnico". A liberdade da fase inicial do capitalismo perdeu seu sentido lógico e conteúdo tradicional de forma que a sociedade pode exigir a aceitação de seus princípios em troca de um padrão de vida crescente, pois "parece fazer pouca diferença o ser a crescente satisfação das necessidades conseguida por um sistema totalitário ou não-totalitário" (Marcuse, 1978, p. 24).

Marcuse aponta para o conceito de falsas necessidades como a forma de guerra mais eficaz e resistente contra a libertação, pois atua de forma a perpetuar formas obsoletas de luta pela existência. As falsas necessidades são aquelas impostas ao indivíduo com o claro interesse de reprimi-lo, determinadas e condicionadas por forças exteriores sobre as quais o sujeito não tem controle algum. É através delas que a base para o consumo (elemento central do atual sistema econômico) é perpetuada em larga escala, pois sob seu jugo o sujeito é impedido até mesmo de decidir a cerca das suas reais necessidades (as necessárias para a manutenção básica da vida) e daquelas que são criadas com a intensão principal de perpetuar a sua servidão. Desta forma, toda a sua possibilidade de liberdade individual é resume-se ao consumo e identificação com as novas necessidades, incitando à fascinação irracional que gera o consumo máximo das mercadorias disponibilizadas pelo mercado.
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A tecnologia tem sido usada como instrumento da política destrutiva, uma política que prima pelo aprisionamento do indivíduo em formas repressivas de labuta. Uma redefinição qualitativa da tecnologia teria como meta a pacificação da luta pela existência. Com vistas a promover a melhoria qualitativa da vida, a razão seria "a direção do 'ataque ao ambiente' que resulta do impulso tríplice: 1) de viver, 2) de viver bem, 3) de viver melhor" (Marcuse, 1978, p. 211). Conforme Fernandes (2012), o tipo de revolução de que Marcuse fala é uma revolução libertadora, uma mudança da consciência dos indivíduos que só pode ser levada a cabo por forças não repressivas.
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Porém, para que surja esta nova consciência é preciso que se crie um âmbito diferente daquele da linguagem unidimensional da sociedade tecnológica, na qual as possibilidades de contestação da ordem sejam permitidas, "uma linguagem para definir e comunicar os novos 'valores'" (Marcuse, 1969, p.39). A negação radical da ordem existente corresponde cada vez mais à criação de uma linguagem peculiar e, neste sentido, o desenvolvimento de uma linguagem própria pelos grupos subculturais representa um instrumento tanto de contestação como de tomada de consciência.

O surgimento de uma nova sensibilidade, para Marcuse, pressuporia a mudança no emprego da ciência e da técnica, onde sua principal função em uma nova sociedade seria a de, em primeiro lugar, eliminar a exploração e a miséria em âmbito global. A consciência livre, guiada pela imaginação transformadora, conduziria uma nova prática em que a afirmação dos instintos de vida encontraria expressão racional no planejamento racional do tempo de trabalho socialmente necessário entre os vários ramos da produção, determinando assim prioridades de objetivos e seleções: não apenas o que se deve produzir, mas também a forma do produto (Marcuse, 1969).

A imaginação possui papel fundamental na redefinição da cultura, e tem por característica básica a contraposição à racionalidade científica moderna. Enquanto a primeira pode ser vista como matéria prima da arte e da transformação qualitativa, a segunda, em contrapartida, se caracteriza pela ênfase dada à quantificação e exatidão. Enquanto manifestação da sensualidade, a imaginação criadora da arte possui a capacidade de guiar uma racionalidade não-repressiva: "a imaginação entra em acordo com as noções cognitivas do entendimento, e esse acordo estabelece uma harmonia das faculdades mentais que é a resposta agradável à livre harmonia do objeto estético" (Marcuse, 1975, p.160). Desse modo, a imaginação livre característica da arte pode ser utilizada para a transformação da racionalidade instrumental, substanciando-se em uma racionalidade fundada essencialmente em Eros. Nesse caso, sua principal função será o desenvolvimento de uma ciência e tecnologia livres para realizar as potencialidades humanas na proteção e gozo da vida (Marcuse, 1969).
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A técnica poderia, então, devir da arte, e a arte tenderia a formar a realidade, invalidando a oposição entre imaginação e razão, baixas e altas faculdades, pensamento poético e científico. Para Marcuse (1969), encontra-se aí a possibilidade do surgimento de um novo princípio da realidade, não mais dependente das exigências do princípio do desempenho ou curvado sob a égide da mais-repressão. A não existência da sobre-repressão instintual possibilitaria a junção de uma nova sensibilidade a uma inteligência científica marcada pela necessidade de libertação. Essa racionalidade fundada em um Ethos estético teria na dimensão do belo, uma referência essencial na fundamentação da nova racionalidade. A beleza como poder de anular e imobilizar a violência, assim como no mito de Medusa, aquela que paralisa o agressor pela beleza.
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Conforme Fernandes (2012), a transformação do mundo pela forma estética pode ser entendida também como uma nova determinação da realidade, caracterizando-se pela junção da natureza e da liberdade. É nesse estágio que a arte pode contribuir para a transformação social, fornecendo as imagens para uma redefinição da realidade. Em um mundo regrado pelas leis de mercado e pela competição irrestrita, a dimensão estética poderia servir como uma espécie de calibrador para uma sociedade livre (Marcuse, 1969). Conforme Marcuse, as qualidades estéticas teriam como elemento inerente a qualidade de poder se constituir apenas a partir da luta contra aquelas instituições que negam o seu desenvolvimento. Ou seja, possuem como caráter básico o seu conteúdo social de negação.
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Porém, para que tal racionalidade surja é primeiro necessário fazer brotar nos explorados a consciência que lhes permita vislumbrar sua real condição, assim como as falsas necessidades que perpetuam sua dependência ao sistema. Segundo Marcuse (1969), tal ruptura só poderá ser resultado de uma educação política em ação, sem a qual qualquer revolução poderia se transformar em uma contrarrevolução. No esquema de redefinição da cultura proposto por Marcuse a educação tem papel essencial. Através dela seria criada uma esfera de resistência à dominação imposta pelo sistema econômico e positivista.
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Em um mundo onde o controle da subjetividade é mantido pela satisfação real das necessidades por um lado, e pela manipulação e administração massiva das falsas necessidades por outro, a educação seria um instrumento importante na luta contra as formas mutiladas de experiência e consciência fabricadas pelo establishment. Neste contexto, Marcuse aponta para o fato dos intelectuais, que embora não possam constituir o agente histórico da mudança, serem as bases sobre as quais deve partir a mudança (Marcuse, 1986), ou seja, os catalizadores dos processos de contestação e libertação da sociedade opulenta. Esse grupo torna-se de fundamental importância na medida em que a libertação exige dos homens uma nova consciência e sensibilidade, assim como novos valores, onde somente serão aptos a levá-la adiante os grupos sociais que, por sua posição privilegiada, podem atravessar o velo material da comunicação e do doutrinamento de massas.

No âmbito educacional, a educação para a autonomia intelectual e emocional seria mais do que um mero desafio em virtude de pressupor de antemão a violação de alguns dos tabus democráticos mais fortes, pois a atual democracia se esconde atrás de uma pseudodemocracia, mais importada em deter o desenvolvimento das necessidades sob o disfarce de desenvolvê-las (Marcuse, 1986). Isso significaria ir contra as tendências mais poderosas desta sociedade para que a verdadeira libertação do pensamento e da aprendizagem superem racionalmente os limites do status quo.

No ideário marcuseano, se os problemas da atual sociedade têm seu foco na concepção de razão inerente à ciência e ao progresso, uma redefinição guiada pelo ideário de valorização das esferas teóricas e transcendentes do pensamento, seria capaz de sustar a mudança qualitativa da razão na medida em que não se sacrifica frente ao empirismo e ao positivismo (Marcuse, 1986). Neste sentido, a ênfase voltar-se-ia para as ciências humanas, para a teoria "pura", a filosofia especulativa, etc. Pois, enquanto pensamento não-operativo, as humanidades representam um escopo teórico que têm como caraterística básica a oposição ao positivismo e, consequentemente, formam uma esfera antagônica à atual ciência instrumental.
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No ideário marcuseano, se os problemas da atual sociedade têm seu foco na concepção de razão inerente à ciência e ao progresso, uma redefinição guiada pelo ideário de valorização das esferas teóricas e transcendentes do pensamento, seria capaz de sustar a mudança qualitativa da razão na medida em que não se sacrifica frente ao empirismo e ao positivismo (Marcuse, 1986). Neste sentido, a ênfase voltar-se-ia para as ciências humanas, para a teoria "pura", a filosofia especulativa, etc. Pois, enquanto pensamento não-operativo, as humanidades representam um escopo teórico que têm como caraterística básica a oposição ao positivismo e, consequentemente, formam uma esfera antagônica à atual ciência instrumental.

Conforme Marcuse (1986), o aprendizado baseado nas premissas tecnicistas serve para cercar as raízes da autodeterminação da mente do sujeito, de forma que exige uma dissociação crítica do universo da experiência. O estudante é, assim, orientado a compreender as condições e possibilidades estabelecidas somente nos termos e nas condições dadas, sendo que seus pensamentos e ações ficam restringidos por um pragmatismo científico formado por uma experiência mutilada. Sem a crítica da experiência o estudante fica privado dos métodos e instrumentos que lhe permitem avaliar e compreender a sociedade e a cultura em seu conjunto, no interior do continuum histórico em que esta sociedade deforma e nega suas próprias possibilidade e promessas.

Neste caso, Marcuse atesta para o fato de que uma redefinição da cultura necessitaria também da criação de um refúgio intelectual onde a ciência teorética se veria livre das influências da racionalidade instrumental, onde a ênfase seria dada não mais à ciência instrumental, desejosa de resultados quantitativos, mas sim a métodos e conceitos capazes de superar os limites dos valores estabelecidos. Esta educação teria o poder de preparar o fundo espiritual para uma hierarquia qualitativamente diferente de valores e poder, somente sendo possível por parte de um governo desejoso e capaz de contestar a tendência política e a econômica dominante (Marcuse, 1986).
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A criação de novas necessidades, assim como a libertação instintual e o consequente surgimento de uma nova sensibilidade, na obra marcuseana é revestida pela ideia de uma educação estética que se converte em formação: construção de um pensamento crítico, que no contato com os elementos estéticos, fomenta uma práxis transformadora. Em um texto de 1967 intitulado A arte na sociedade unidimensional, Marcuse apresenta brevemente o motivo que o levou a se ocupar com o fenômeno da arte: "aconteceu por uma espécie de não-esperança ou desespero. Desespero ao perceber que toda a linguagem, toda a linguagem prosaica e particularmente a linguagem tradicional, de algum modo parece ter morrido" (Marcuse, 1982, p. 245, grifos do autor). Ela se tornou incapaz de comunicar as situações que se desenrolam frente a nossos olhos, assim como parece ter se tornado inteiramente obsoleta em relação às novas formas de protesto e recusa apresentados pela arte, principalmente pela busca surrealista em encontrar uma linguagem nova. Neste sentido, para Marcuse, somente a linguagem da arte parece ser livre, pura e verdadeira para expressar as verdades que não podem ser ditas livremente no mundo reificado das mercadorias; enfim, "a sobrevivência da arte pode vir a ser o único elo frágil que hoje conecta o presente com a esperança do futuro" 
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Conforme Marcuse (1986), a arte hoje deve também ser considerada como uma técnica, no sentido prático do termo, pois agora mais do que nunca, sua atividade é mais a de fazer e refazer coisas do que pintar quadros. Sendo assim, ela pode e deve ser considerada uma técnica, porém completamente oposta à atual concepção de tecnologia, ou seja, baseada no poder da imaginação e da estética, infinitamente mais humana, pronta para ser inserida como pilar mestre da transformação da moderna razão repressiva. É importante atestarmos que para Marcuse (1986) a dimensão estética não é fonte de transformação objetiva clara e rápida, ela apenas pode libertar a percepção e a sensibilidade necessárias para a transformação. A partir do momento em que uma real mudança houver ocorrido, a arte passa a guiar a construção de uma nova sociedade que, consequentemente, também implica no surgimento de uma nova racionalidade.
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 Conforme o filósofo, a subjetividade pode ser considerada em si mesma como política. Isto é, na medida em que a emancipação das condições dadas de vida e sua transcendência em direção de mais liberdade, alegria e tranquilidade são impulsos que constituem necessariamente a subjetividade, esta nada mais é do que um projeto interno dos indivíduos que introjetam e confrontam sua sociedade.

Focando na libertação subjetiva como base para a transformação da existência objetiva, a educação estética desponta na obra marcuseana como um fator de suma importância na redefinição da cultura estabelecida. Nela seriam dirigidos todos os esforços que visam a uma constituição da subjetividade livre e sensível, baseada na pureza e na força antagônica da racionalidade estética, pois "enquanto a arte preservar, com a promessa de felicidade, a memória dos objetivos inatingidos, pode encontrar, como uma 'ideia reguladora', na luta desesperada pela transformação do mundo" (Marcuse, 1977, p.75). Contra toda a reificação e dominação dos indivíduos pelas condições objetivas, a arte representa sobretudo o objetivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo.